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O Carretel Da Espuladeira

O tempo é como um fio a correr pelo carretel da espuladeira. Para quem conhece a produção industrial têxtil, um dos motores da economia jundiaiense durante décadas, a espuladeira é uma das peças-chave do setor, máquina utilizada para ajudar a compor a trama que dá forma ao tecido. O tempo também é uma trama de vivências, experiências, modos de vida que vão se entrelaçando por entre as máquinas da produção da sociedade.

Aquele tempo passado, supostamente esquecido, se mistura com o presente, emerge novamente, na genética e na experiência de quem vive. Nos anos 50, milhares de meninas compunham a grande massa trabalhadora do segmento têxtil. Tecelãs que, como arrimo de família, sustentavam pais e irmãos, já que para os padrões da época, o salário que ganhavam era considerado de elevado valor.

Posto abaixo o segmento inteiro, a cidade se transformou como nunca. A urbanização e o mundo do trabalho não comportavam mais aqueles espaços barulhentos e insalubres dos ambientes fabris. Os que não são herdeiros das agruras das operárias talvez se coloquem no cômodo lugar da defesa de uma visão romantizada da história que, nem ela mesma, se encontra nos livros. Há silêncios absolutos, não verificáveis, em parcos registros que, desprotegidos, apodreceram, em parte, nos porões mal cheirosos da história.

Mas a vitória dos vencidos, os resistentes, esta que não consta nos registros e nem na memória dos vitoriosos, ergue-se nos poros de alguns viventes como eu. Fui e sou filho de uma daquelas tecelãs, que não está mais aqui para revisitar a própria memória. Coloco-me em seu lugar, não como ocupante simbólico, mas real e concreto, do mesmo espaço em que outrora trabalhara. Filha de analfabetos e pouco letrada, felizmente, ofereceu ao mundo herdeiros que, pelas desventuras da vida, se colocaram diante da mais sublime tarefa que existe na face da terra: a de educar. Por um desses acasos, no ofício de historiador, já me pus a pensar e rabiscar alguns destaques científicos sobre a condição operária dessa menina, minha mãe, que no anonimato público, apesar da fadiga da tripla jornada, legou-me uma importante missão.

Destaco a ironia do tempo, que, como num escorregar dos fios pelos carretéis da espuladeira, fez-me, sem querer, estar ali, naquele mesmo espaço, 60 anos depois. Onde hoje trabalho em função pública, ajudando a pensar e repensar a formação das novas gerações de jundiaienses, esteve a trabalhar a minha mãe, uma operária. E sou grato aos carretéis do tempo, porque pelo menos poderei honrar sua memória mais comprometidamente.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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