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FILOSOFIA E LITERATURA

Algumas circunstâncias sugeriram esta modesta reflexão. Neste semestre, o professor César Nunes coordenará uma disciplina no programa de pós-graduação em educação da Unicamp, que eu terei a honra de participar como colaborador. Filosofia, educação e literatura. Para os olhares menos atentos, as relações entre filosofia e literatura e, portanto, entre o saber acadêmico e as narrativas literárias não se sustentariam. Claro engano. Quem pensa assim, tem uma visão curta sobre o que significa cultura e os desdobramentos que esta relação traduz para as condições históricas passadas e presentes.

É de conhecimento púbico que o rico período clássico grego, no século V a. C., teve seu ápice com o surgimento da filosofia e da democracia. Não menos importante lembrar que os traços anteriores da cultura grega, marcadamente entremeados por discursos religiosos e literários, foram fundamentais para constituir a racionalidade filosófica que teve seu ápice generacional com o grupo de filósofos chamados de “socráticos” (Sócrates, Platão e Aristóteles).

Na cultura mitológica, não desprezada por estes filósofos, as narrativas literárias desempenharam papel fundamental. O mesmo ocorria entre outros povos antigos, como o povo hebreu, nas condições históricas dadas, imaginando um sentido possível sobre as origens universais por meio da literatura.

Homero e Hesíodo foram autores de referência entre os gregos. As famosas sagas epopeicas da Ilíada e da Odisseia de Homero são exemplos de como, antes do surgimento da filosofia, a poesia e a literatura cumpriam funções interpretativas centrais sobre as condições existenciais humanas. Na cultura grega em geral, já no período clássico, a sintonia entre as áreas do conhecimento era condição implícita para se avaliar as situações concretas e não concretas de vida. Tanto, que Platão utilizou a estratégia da narrativa literária na descrição genial de sua teoria do mundo das ideias, com a famosa alegoria da caverna. Cabe lembrar, também, que seu estilo literário se traduziu nos famosos diálogos, em que explicitava as condições de entendimento que a filosofia propugnava.

No período renascentista, já na passagem da idade média para a modernidade, esta perspectiva integradora das diversas formas de conhecimento retornou à cena. A literatura retomou seu lugar de destaque com Shakespeare, Petrarca, Dante e Boccaccio, por exemplo. Infelizmente, na modernidade mais recente, sobretudo a partir do século XVIII, a cisão entre as áreas do conhecimento retomou sua força, em função do avanço da dinâmica industrial do capitalismo. O sentido da especialização do conhecimento, a separação das áreas científicas, em parte para garantir a evolução sistêmica, mas, por outro lado, contribuindo para o empobrecimento de uma compreensão holística da realidade foi a tônica do momento. E é, de certa forma, até hoje. Talvez isso explique, por exemplo, a insistência por uma política educacional com viés tecnicista, descolada da formação integral e para a cidadania.

Desta forma, separar a literatura, a poesia, a música, do conhecimento dito acadêmico e científico, nada mais é do que repetir a lógica empobrecida da cultura enquanto segmentação. Alguns podem ser considerados literatos, outros não. Isso tomou corpo nas chamadas “academias literárias”, ambientes muitas vezes politicamente tomados por questões menores. Nem sempre seus membros são escritores. Isto não os torna menos merecedores. Se tomarmos como exemplo a constituição do corpo de acadêmicos da Academia Paulista de Letras, veremos que há entre seus membros, muitos autores provindos da vida acadêmico-científica e mesmo da música. Alguns deles, sequer sem uma obra publicada dentro do que se convencionou chamar de literatura. O mesmo pode ser dito sobre a Academia Brasileira de Letras. Talvez isso indique que não há uma pequenez nestas instituições, mesmo que, no caso da academia brasileira, situações como a de Mário Quintana sejam paradoxais. Referindo-se ao caso de Quintana, Cícero Sandroni nos diz: “Em que medida este fato alcança a sua imortalidade? Em nada. A glória que fica, eleva, honra e consola não é privilégio dos quarenta. Grandes nomes da literatura brasileira ausentes do Petit Trianon podem ser contados às dezenas, sem que essa circunstância nem de longe alcance o valor da obra reconhecida pela crítica e pelo público.

Recentemente recebi dois convites especiais. Um para um diálogo sobre Música e Literatura, no Senac-Campinas, que ocorrerá em abril. E outro para uma entrevista no programa Diálogos, do jornalista Anderson Junque, quando conversaremos sobre Educação, música e literatura. E veio à mente, para estes dois encontros, algumas experiências recentes que exprimem este sentido maior da relação entre as diversas formas de elaboração cultural. Em 2019, em uma das minhas passagens por Portugal, durante um jantar com amigos, fomos surpreendidos com a informação de que Chico Buarque recebera o prêmio Camões de literatura. Vibramos. Alguns anos antes, o discreto cantor e compositor popular estadunidense, Bob Dylan, recebera o premio Nobel de Literatura. No caso de Buarque, sabiamente um grande escritor. Já Bob Dylan, o reconhecimento se deu pela sua veia poético-musical.

São exemplos concretos de como, se quisermos alargar nossa compreensão sobre que é cultura, será necessário descer do pedestal que cinde em pedaços as diversas experiências de construção de conhecimento. Que a literatura tenha suas especificidades “técnicas”, não se questiona. Fui aluno de um grande professor de literatura, Claudio Tafarello, nos idos do antigo colegial. Com ele aprendi sobre as formas, os estilos, os gostos literários. Mas aprendi também, com a filosofia, que a visão míope que separa literatura de ciência, de filosofia, de trabalho acadêmico, em nada contribui para o avanço dos horizontes da cidadania. Tenho fé que os percalços que atingem a todos/as, os/as que se dedicam com amor às causas da cultura, fazem parte de um processo de aprimoramento humano. Ninguém escapa de aprender com o/a outro/a, mesmo quando aflora a justa raiva pedagógica.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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