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A FLORADA DAS RESEDAS

Exatamente hoje, 22 de dezembro, a primavera chega ao fim. Uma estação em que os desabrochares, os encantamentos coloridos e frutíferos, enchem os nossos olhos. Como no processo vital, depois de um inverno de recolhimento e reflexão, a primavera representa a revitalização, a preparação do que virá, o período das chuvas e da fertilização. E a plenitude da vida se consuma.

Quem teve olhos para ver, nas últimas semanas percebeu a explosão de flores que ladeiam as vias da cidade. São as resedas, de todas as cores, roxas, rosas-escuras, rosas-claras, brancas, que enchem de alegria o coração de quem se interessa pelos detalhes da existência. Minha mãe gostava dessa pequena arvorezinha.

É nesse plano da existência que outras sensibilidades, como se flores de resedas fossem, preenchem de sentido a caminhada que caminhamos. Parcimoniosamente, sobretudo após atingir o topo da montanha da cronologia da vida, os contentamentos de grande monta, mesmo que aparentemente efêmeros, aproximam-se do mesmo significado que a primavera enseja, a revitalização. Revitalizar é renovar a vida.

Na precariedade de nossa vã presunção, imaginamos que damos curso ao nosso processo pessoal sem que nada possa desviar os caminhos, sugerir os atalhos e “vai e vens”, os quais na prática nunca conseguimos dominar. Por vezes esses atalhos são providenciais, porque nos possibilitam olhar a totalidade do processo do caminhar com outros olhos, os olhos da aprendizagem.

Durante a adolescência e a juventude, talvez a impetuosidade desejante indique que devemos reagir a tudo que seja contra o que pensamos sobre nós mesmos, nossas crenças e opiniões. Na maturidade, alguma freiada qualquer nesse ímpeto, faz com que, menos certos de nossas certezas, estejamos mais abertos para verificar as cores das resedas, os encontros inimaginados, as memórias perenes de momentos de alegria.

Foi assim que nos últimos 18 meses eu me coloquei na condição de observador do meu próprio processo. Olhei para trás sem melancolias ou saudosismos baratos, para abrir-me ao processo de revitalização. Olhei para as pessoas que me rodearam ao longo das décadas passadas. Algumas foram fundamentais para meu aprimoramento pessoal. Os amigos especialmente, aqueles que na fidelidade se mantiveram ao nosso lado. E tantas pessoas em inúmeras situações que nos fizeram bem. Mesmo aquelas com as quais nunca tivemos tanta intimidade.

E escrevi um livro sobre meus professores e professoras. Estive ali, naquelas páginas, ressiginifcando as experiências de formação e convivência humana. Dando valor ao que precisa ser dado, reconhecendo o que precisa ser reconhecido. Alguns dos nossos mestres e mestras passam pela nossa vida durante um, dois anos. Não mais que isso. E qual a razão de ser, de uma memória perene que nos acomete o espírito, quando deles e delas nos lembramos? Talvez a vontade de humanização plena. Sem os melindres que as supostas diferenças levem a amenizar essas lembranças. Ao contrário, uma abertura sem barreiras para ver no outro ou na outra que antes nos ensinava, um ser humano em revitalização, como nós.

E neste final de primavera, quis o escrutínio das experiências de vida, uma escolha não muito bem escolhida, eu me encontrasse pessoalmente com uma das minhas professoras da adolescência. Fui lá agradecer e levar o meu modesto livro. Um encontro memorável, sobretudo porque ela atuava em uma das áreas pela qual eu tenho paixão pessoal: a história. A professora Maria Helena Degani Rocha foi minha professora em 1973 e 1974, no antigo Ginásio Estadual Professor Adoniro Ladeira, no bairro da Vila Rio Branco.  Ela e seu marido, o professor Mauro Rocha. Ela abriu as portas de sua casa e de seu coração, para, mais uma vez, me acolher em diálogo sobre a nossa paixão, a ciência histórica. Ela é e foi uma grande profissional da Rede Estadual, bem como do Ensino Superior, na PUC-Campinas, em época em que eu ainda debutava na graduação em Filosofia.

Ali naquele momento de trocas, de memórias e experiências pessoais e conjuntas, falamos sobre pessoas, sobre livros, sobre aspectos da história local, sobre lugares, sobre a temporalidade, sobre a vida, essa que se parece com as cores das resedas. Uma mágica qualquer, em que admiração e respeito nos fazem crescer mais do que as aulas do passado, mais do que os livros já lidos e os saberes sabidos. Senti-me profundamente feliz. Ganhei presentes, livros, um LP do Taiguara, vejam só. Ela viu uma das minhas postagens em que falei do grande cantor e separou o presente, guardado sabe-se lá durante quantas décadas. Ele era para mim, certamente. E senti que ainda não cheguei ao topo da vida, como imaginava. O topo da vida é onde ela está. Porque como repete insistentemente um grande amigo, citando o conceito elaborado por Bernard de Chartres no século XII e repetido ao extremo por Isaac Newton, “se vi mais longe é porque subi nos ombros de gigantes”. Esse sentido mais profundo, do descobrir a verdade a partir de experiências anteriores, parece ser um dos propósitos dos historiadores. E eu estava ali, naquela sala de estar, me sentindo o máximo, porque subi nos ombros dessa mestra gigante, em algum momento desse passado.

Talvez uma outra faceta da maturidade seja a da aquisição da tolerância, uma disposição para enfrentar como podemos nossa insistência narcisista em nos sentirmos o umbigo do mundo. E como está encalacrado em minha experiência, pela disposição cristã que essa cosmovisão me legou, pensar no outro e alegrar o outro. Amá-lo, como fundamento do cristianismo, um princípio que retorna à cena de nossa circunstanciada aprendizagem. Há muitos outros e outras que talvez não mereçam tanto amor, porque se imiscuem com a maldade e o prazer em destruir os sentidos respeitosos, democráticos que a socialização e a civilidade supõem. E os historiadores estão entre os profissionais das humanidades a indicar os bons princípios da construção da cidadania. Uma política do fazer coletivo, do bem público.

E que boa sensação, a da satisfação em me ver com alguém que me ajudou a ser o que sou. Depois de 50 anos, sentir que tudo valeu a pena. A vida realmente nos oferece muitas resedas. Que bom poder ter olhos para ver.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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