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PAIDEIA E A FILOSOFIA DO AMOR

Nós que passamos apressados
Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras e as palavras de gentileza

Por isso eu pergunto a você no mundo
Se é mais inteligente o livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola
A vida é um circo
“Amor” palavra que liberta
Já dizia o profeta

(Marisa Monte)

 

O ideal grego de educação nos inspira até hoje.  A filosofia clássica, que contribuiu para consolidá-lo, mesmo que lida e relida de outras formas na atualidade, sugere-nos que para além de uma razão, digamos, idealista, metafísica, há possibilidades para a tarefa de pensar nosso aprimoramento humano com a substância central do nosso desejo: o amor. Vem de Platão, nas leituras complexas e aprimoradas do professor César Nunes – como uma lente que amplia as imagens fundamentais  – , esta premissa da filosofia do amor pensada de forma imbricada com o amor à filosofia. Na minha modéstia acadêmica, diria ser quase uma impossibilidade desvincular este sentido do amor em nossas bases existenciais, do amor à filosofia. Não que devamos descuidar de entender de que amor se fala. Não aquele romantizado que induz a muitos erros de compreensão sobre nossas relações. Em “A arte de amar”, Erich Fromm eleva e conceitua o amor nestes termos: “O amor é uma atividade, e não um afeto passivo; é um `erguimento`e não uma `queda`. De modo mais geral, o caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de tudo, consiste em dar, e não em receber.”

Na segunda metade da década de 80 eu me formei em filosofia. Uma área que escolhi por razões do inusitado da vida. Mas conscientemente. Ainda um adolescente, uma professora me indagara sobre qual área do conhecimento gostaria de escolher quando chegasse à universidade. Para um menino pobre, uma pergunta quase sem sentido, visto que a maioria dos meus contemporâneos não conseguiriam galgar posições na vida escolar. Mas eu disse, sem saber o que dizia, que faria filosofia e história. E por vários acasos, houve a materialização dessa (auto)profecia em mim.

Meus professores e professoras de graduação eram como deuses e deusas no Olimpo do conhecimento, naquele meu inicial imaginário cultural-filosófico de um jovem apaixonado com a vida acadêmica e assustado com a nova condição, justamente pelas possibilidades que ela me proporcionou. Cada um e cada uma delas eu sentia de forma filial, uma adesão respeitosa, uma admiração praticamente fundada num certo sentido espiritual. Naquele momento, quase todos e todas eles e elas já cursavam mestrado ou doutorado, num contexto em que não era muito comum essa  naturalização do desejo acadêmico por estas etapas da formação escolar, nem mesmo as oportunidades eram tantas como temos agora, a despeito das assimetrias do acesso, que ainda existem. Mas eles e elas estavam lá, quase todos na Unicamp. Alguns já eram doutores por universidades como a USP, a UNESP e mesmo Universidades do exterior, da Alemanha  e da Itália especialmente. Difícil me esquecer de Francisco Cock Fontanella, de Régis de Morais, de Maria Cecília Maringoni de Carvalho, de Gabriel Santiago, de Antonio Carlos Martinazzo, de Antonio Carlos Bergo, de Francisco Viana, de Vânia Gomes, de Constança Marcondes César e dos/das demais professores e professoras admiráveis que tínhamos no curso de Filosofia da PUC de Campinas.

Quando a gente se formava, um desejo quase inevitável, ao menos para os que se identificavam com a vida acadêmica, era dar continuidade aos estudos, porque os exemplos estavam ali. No ano seguinte à minha formatura, ingressei no programa de mestrado em Filosofia, da própria PUC de Campinas, escolhendo o campo da ética como minha área de preferência. Ali cursei os créditos de algumas disciplinas, mas num erro tático do meu percurso acadêmico, preferi deixar o curso. A lembrança desta situação e deste erro de interpretação só viria durante a tese de doutorado, quando me lembrei das aulas da professora Maria Cecília Maringoni de Carvalho sobre Habermas. Nem sempre as luzes aparecem em momentos de assoberbamento juvenil. O horizonte do mestrado em educação na Unicamp, lá onde os meus vários professores da graduação estavam cursando a pós-graduação, batia à minha alma. Fiz o processo seletivo, mas não consegui ingressar no programa. A vida seguiu.

Num desses outros inusitados, ingressei no mestrado em história social na PUC de São Paulo. Ali um outro horizonte se apropriava de meu amor pelo conhecimento. Fui aluno da grande historiadora Dea Fenelon, à época diretora do Departamento de Patrimônio Histórico do Município de São Paulo. Defendi o mestrado em 1995 e o desejo de continuar na área fez com que apresentasse, em duas ocasiões, projetos para o ingresso no doutorado em história. Não foi possível. Já com o desalento instalado quanto a outras possibilidades, decidi cursar pedagogia. No entanto, por vezes, as amizades fazem a diferença em nossa vida. A convite do meu grande amigo Jorge Alves de Oliveira, fomos procurar autorização de alguns professores do doutorado em educação da Unicamp, para cursar suas disciplinas. E conseguimos. Pedro Laudinor Goergen e José Luiz Sanfelice, generosamente, possibilitaram esta condição.

E voltou à cena o desejo de retomar o processo de elaboração de um projeto e concorrer ao doutorado. Projeto pronto, foi apresentado tanto na Unicamp como na Faculdade de Educação da USP. Nas duas universidades fui para a entrevista. Na minha banca da Unicamp havia professores com distintas formações, distintas opções teórico-metodológicas e aparentemente não convergentes com aquela minha proposta que seria, no dizer de um deles, “muita pretensão” da minha parte: aproximar Paulo Freire e Jürgen Habermas no campo das relações entre ética e educação. Senti na alma essa crítica e a classifiquei como no mínimo deselegante. É perfeitamente compreensível que uma proposta de pesquisa não se encaixe no referencial teórico-metodológico de um programa, mas nem por isso deve-se perder o respeito à dignidade de um candidato. Na entrevista da USP, estavam Roseli Fischmann, Jean Lauand e Moacir Gadotti, que foram mais acolhedores. Um deles me perguntou se teria disposição para aprender alemão para entender Habermas diretamente na sua língua. Me dispus prontamente. E outro “me salvou” dizendo que eu deveria aprender alemão para entender Habermas e português para entender Paulo Freire. Ingressei na USP. Mas aquelas aulas de Pedro Goergen, sobretudo quando explicitou grande parte, mas sinteticamente em um espaço do semestre, a Ética do Discurso de Jürgen Habermas, intui a possibilidade de associar esta sua dimensão teórica à ética universalista de Paulo Freire.

A secretaria da pós-graduação em educação da USP me indicou o telefone do professor que foi destacado para meu orientador. Mas foi ele quem me ligou. Era ninguém menos que Antônio Joaquim Severino. Eu disse a ele, no telefone, que seu nome havia sido indicado para ser meu orientador. Numa das situações mais impactantes da minha vida acadêmica, ele me perguntou: “E você aceitou?”. Um intelectual desta envergadura, humildemente se colocar desta forma para um recém- doutorando era o que eu precisava naquele momento, numa fase de grande desalento pessoal. Nada comparado àquela postura de alguém que me acusava de pretensioso na Unicamp. Em sua cordialidade constante, Severino respeitou meu processo pessoal, sempre apoiando meu trabalho, mesmo quando ele ainda estava bastante efêmero. As orientações coletivas eram uma marca de sua atuação como orientador. Nesta época ainda existiam muitas confusões sobre o significado de algumas posições de Freire, o que julgo ter sido o motivo de minha não aceitação na Unicamp, já que, modestamente, o projeto estava bem escrito e na fala de um dos membros da banca essa condição ficou expressa: “gosto desse seu jeito de escrever.” Creio que hoje, parte dessas confusões se dissipou com os novos estudos que surgiram a partir do final da década de 2000. Em quatro anos e meio, em agosto de 2006, na minha limitação intelectual, consegui defender a tese. Na banca, alguns nomes escolhidos a dedo. O próprio Pedro Goergen, Vânia Gomes (minha professora de Teodiceia na graduação), Moacir Gadotti e Balduíno Antonio Andreola. Uma deselegância ocorreu novamente. Quando nos recusamos a aderir aos guetos de propriedade intelectual essas situações acontecem. A vida seguiu.

Entre idas e vindas, eis que a (re)aproximação com um dos meus professores da graduação, fez com que um novo inusitado aparecesse em minha vida acadêmica. Naquela época, nos anos 80, ele cursava mestrado na Unicamp, fora aluno de Paulo Freire, tinha um cabelo comprido e um discurso rasgado à esquerda. Era difícil para qualquer pessoa do nosso grupo de alunos e alunas, não se interessar por aquela figura. No reencontro em 2015, dentre outros já ocorridos anteriormente, ele já era um consolidado professor da Faculdade de Educação da Unicamp, uma das maiores expressões da Filosofia da Educação no Brasil, com repercussões no exterior.

Pelas suas mãos ingressei no pós-doutorado em educação na Unicamp, em 2017, mesmo ano em que conquistei minha aposentadoria como professor universitário no setor privado. Aquele espaço onde eu sonhara realizar o percurso de minha vida acadêmica nos idos dos anos 90, agora estava ao meu alcance. Desde então, tenho procurado colaborar com o meu antigo professor, César Nunes, com as mesmas limitações que ainda possuo. Ele me proporcionou realizar um estágio na Universidade do Porto e minha permanência em Portugal, me levou à possibilidade de realizar um novo pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Desde 2017 colaboro nas aulas de graduação. Ingressei no Programa de Pesquisador Colaborador e pude assumir outras tarefas de forma mais presente, como coorientações, bancas, participação em eventos e o partilhamento de disciplinas na pós-graduação, sempre em colaboração com o professor César.

Nos últimos dias o nosso Grupo de Pesquisas, o PAIDEIA, organizou o V Simpósio Nacional de Pesquisas e Estudos em Filosofia da Educação, com a coordenação geral do professor César, que além de ser o líder do grupo, também coordena o Departamento de Filosofia e História da Educação. Um evento regado à razão e ao amor, quando foi possível ter acesso às falas de grandes educadores, como Bernard Charlot, Antonio Gomes Ferreira, Marcos Cézar Freitas, Cesar Augusto Ribeiro Nunes, Sílvio Gamboa, Régis Henrique dos Reis Silva, Celi Taffarel, Jaqueline Moll, Pedro Goergen, José Carlos Libâneo, além da apresentação dos trabalhos dos membros do grupo PAIDEIA e de pesquisadores de outras universidades.

Fui convidado para mediar a conferência do professor Charlot e participar do comitê científico do evento. Havia preparado uma pequena introdução, mas em razão do tempo, não foi possível que ela fosse apresentada. Tratava-se de uma deferência ao professor César e, por tabela, ao fato de, com muita honra, eu estar nesta condição de pesquisador em um grupo de pesquisas e de uma faculdade na qual atuaram alguns importantes intelectuais, dentre eles, alguns de meus ex-professores, que por si só, significam a glória para um modesto professor como eu. Rubem Alves, Antonio Carlos Bergo, José Luiz Sanfelice, Eduardo Chaves, Augusto Novaski, Silvio Gamboa, Newton Aquiles Von Zuben, César Nunes, Pedro Goergen, Régis de Morais e José Luiz Sanfelice, dentre outros.

Naquele pequeno texto de introdução da minha mediação da palestra do professor Charlot eu iria dizer:

“Neste lindo movimento histórico, que levou à construção deste grupo de pesquisas, se ele representasse um texto acadêmico, eu seria apenas uma vírgula, com muita alegria. Hoje pela manhã, numa fala emocionante, a professora Celi Taffarel disse que seus filhos são filhos políticos do professor César Nunes. Não tenho nenhuma criatividade para ser diferente dela e, por esta razão digo que desde há 33 anos atrás me sinto relativamente assim. Desde que fui aluno de graduação do professor César, ele com 30 anos e eu com 27, sinto-me como se fosse seu meio-filho, meio-irmão intelectual, um irmão fraterno. Mais que isso talvez, um filho-irmão psicológico, espiritual, se assim se pode dizer, sem exageros. Há espelhos que são bons, porque revelam em nós o que gostaríamos e o que não gostaríamos de ter sido, fruto da plena humanidade em nós que se constrói dia-a-dia. A amizade verdadeira é aquela que comporta o sim e o não. E o professor César é um enorme espelho para todos nós, integrantes do PAIDEIA. No meu caso, não teria conquistado várias oportunidades de aprendizagem se não fosse por sua intervenção generosa e sempre presente. Ele próprio costuma dizer que precisamos subir nos ombros de gigantes para poder ver ao longe. Ele e vários dos professores que fizeram parte do PAIDEIA foram e são esses gigantes. E o mais incrível ainda é que tenha me destacado para ser mediador de uma conferência de outro gigante da educação brasileira e mundial, o professor Bernard Charlot.”

Olhando o PAIDEIA como um espaço acadêmico em que a rigorosidade acadêmica é uma marca sempre presente, vejo-o também cheio de uma amorosidade, naquela conexão que mencionava no início deste texto. Quem não se emocionou com as falas dos professores Pedro, René, José Claudinei (Zezo), Antonio Carlos e César Nunes, na homenagem a José Luiz Sanfelice? Quem como eu não se emocionaria e ficaria pasmo em perceber que no inusitado da vida, talvez sem o planejamento frio que imaginamos para nós, eu participaria deste momento do PAIDEIA? E mais, quem como eu não ficaria emocionado em perceber que alguns dos meus ex-alunos fariam parte deste processo, como o Guilherme, que cursa mestrado e a Janaina que se prepara para o doutorado? Ou ainda, quem como eu não se encheria de sentimentos de amorosidade em relação aos meus muitos velhos e novos amigos que compõem este processo de imbricamento do amor à filosofia e da filosofia do amor no PAIDEIA?

Uma glória final, fica por conta do fato de que Paulo Freire, aquele autor do meu projeto de doutorado, agora seja nome do prédio da Faculdade de Educação da Unicamp e que tenha sido a inspiração do V Simpósio do Paideia, neste ano em que se comemora o seu centenário de nascimento. O professor César sempre se filiou à Pedagogia Histórico-Crítica. Eu sempre me coloquei como um freireano moderado, destes que não se encaixa em espaços de devoção personalista, como clubes fechados. Paulo Freire foi professor na Unicamp. Na mesma faculdade em que Dermeval Saviani se consolidou com um dos maiores educadores brasileiros de todos os tempos. É dele uma deferência generosa, amorosa eu diria, ao patrono da educação brasileira, em seu célebre trabalho “História das Ideias Pedagógicas no Brasil”. Ele diz:

“Paulo Freire foi, com certeza, um dos nossos maiores educadores, entre os poucos que lograram reconhecimento internacional. (…) Após a sua morte, ocorrida em 1997, a uma maior distância, sua obra será objeto de análises mais isentas, evidenciando-se mais claramente o seu significado real em nosso contexto. Qualquer que seja, porém, a avaliação a que se chegue, é irrecusável o reconhecimento de sua coerência na luta pela educação dos deserdados e oprimidos que no início do século XXI, no contexto da “globalização neoliberal”, compõem a massa crescente dos excluídos. Por isso seu nome permanecerá como referência de uma pedagogia progressista e de esquerda.” 

É justamente nesta perspectiva que julgo ter trabalhado nos últimos 20 anos, com minhas publicações em livros e artigos. Minha passagem por Portugal demonstrou e meu último trabalho de pós-doutoramento em Coimbra comprova de forma patente a praticidade da pedagogia libertadora nos processos de alfabetização de adultos, como uma das formas de garantir a vida cidadã.

Paulo Freire foi professor de alguns dos meus professores. Talvez ele não imaginasse que seria homenageado com a identificação do prédio da Faculdade de Educação da Unicamp. Mas aconteceu. Talvez pensar educação e direitos humanos não fosse possível se um de seus antigos alunos, César Nunes, não tivesse criado uma nova linha de pesquisa.

E, no final de tudo, vejo os professores efetivos da Faculdade de Educação da Unicamp que fazem parte do Departamento de Filosofia e História da Educação, integrantes do Grupo Paideia, como o próprio César, Sandra Leite, Régis Reis Silva, os agora professores colaboradores já aposentados Pedro Goergen e Silvio Gamboa e posso dizer com humildade: estar como pesquisador colaborador ao lado destes gigantes é o arremate final de tantos inusitados de meu percurso existencial. Das voltas que a vida dá, uma solenidade de gentilezas infinitas sela a dinâmica de um amor materializado nas nossas lutas pela emancipação possível.

 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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2 Comentários

  1. Márcio José Cenati

    Polli, que texto delicioso de saborear. Quando você nominou os professores da PUCCAMP, meu coração se encheu de saudades! Entrei na Filosofia em meados da década de 90. Tive a oportunidade de ser aluno da Maria Cecília Maringoni de Carvalho, na ocasião ela lecionava Lógica, do Antonio Carlos Martinazzo que lecionava iniciação filosófica, da Constança Marcondes César que lecionava metafísica, do professor Francisco Viana que lecionava Ética. Faço menção ao professor Luiz Roberto Benedetti que lecionava Sociologia e foi o orientador do meu TCC. Quantas saudades! Que bom poder rememorar estes nomes e voltar a sentir o sabor filosófico daqueles tempos.

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