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O BATISMO, O CRISTIANISMO E AS AMIZADES

Há inúmeros estudos e documentos históricos que defendem a existência do homem Jesus de Nazaré. De Flávio Josefo até os autores contemporâneos, esta verdade tem sido comprovada com contextualizações sobre as condições de vida de seu tempo na Palestina. Também os grandes teólogos, de diferentes expressões, como Albert Schweitzer, trabalharam na análise das diferentes interpretações sobre a mensagem e as realizações de Jesus. Conhecidos são os estudos de Joaquim Jeremias e de Émile Morin, que descrevem as estruturas da sociedade judaica, suas diferentes dimensões, no período em que Jesus viveu.

Há quem tenha tentado, com intenções científicas coerentes e verdadeiras, “humanizar demais” o homem Jesus de Nazaré. Na maioria das vezes são cientistas da religião, historiadores, mas não teólogos. A “contradição” entre a condição humana e a “divina” em Jesus, quando se humaniza demais ou se mistifica demais, parece-nos um caminho a não ser seguido para quem quer compreender o chamado “movimento de Jesus”. Há um homem, que de tão humano, “diviniza-se” e inspira a humanidade com uma mensagem de amor, de combate aos preconceitos (contra crianças, idosos, doentes, mulheres, pobres, estrangeiros e sofredores de todas as naturezas), de misericórdia e acolhimento, de solidariedade e luta contra as injustiças. Muitos quiseram reduzir Jesus a um Zelota (um ativista político contra o domínio romano). Há de fato uma crítica ao poder temporal na mensagem de Jesus, mas ela não é redutora de sua intencionalidade.

Um comportamento incontestável em Jesus é a sua “recusa a colocar-se no plano legalista” (Émile Morin). Ao contrário, abria-se com seu potencial humanizador à crítica movida pela liberdade de expressão religiosa, aos formalismos dos preceitos defendidos por diferentes grupos religiosos judaicos (fariseus, saduceus, zelotas). Há também quem diga, por uma suposição histórica, que ele tenha participado da comunidade dos essênios, da qual também teria participado seu primo, João Batista, que o batizou.

Dentre os evangelhos, o de Marcos é a fonte primária mais significativa e verossímil em relação à mensagem cristã. Como os evangelhos são fruto de um contexto histórico posterior ao Jesus histórico, há muita humanidade presente nestes “textos sagrados”. Há até mesmo muitas controvérsias sobre o significado do Batismo nas origens do cristianismo, já que entre os judeus este ritual religioso não possuía muita significação. Na idade Média, com as interpretações sobre o que significa participar de uma comunidade religiosa cristã, esse sacramento passou a ganhar grande importância. Em parte, por representar o ingresso na comunidade cristã, a profissão de uma fé. Mas certamente o peso da moralidade daquele período exerceu e ainda exerce um fascínio desviante, no que se passou a imaginar sobre o significado do batismo: livrar-nos da mancha do pecado original.

Estou entre aqueles que não compartilham das interpretações científicas que tentam “provar a inexistência de Deus”, embora as compreenda. Deus não é um objeto para uma epistemologia cientificista. Negar as contribuições da própria ciência, especialmente da antropologia, que indicam a significação da experiência religiosa na constituição das diferentes culturas, configura-se como um erro hermenêutico de grande proporção. Não que o teísmo deva ser combatido como numa cruzada.  O próprio Papa Francisco tem se manifestado, dizendo que “é melhor ser ateu que um cristão hipócrita”. A hipocrisia anda de mãos dadas com os fundamentalismos.

Por razões da própria experiência histórica, tive minhas bases fundamentais ligadas ao cristianismo católico. Por opção própria, desde os 9 anos de idade. Nunca houve alguma influência de meus pais nesta minha adesão ao catolicismo. Há uma frase de efeito que é dita com muita regularidade e que tem lá a sua importância. “Não cuspa no prato em que comeu”. Para o bem da verdade, iniciei minha militância no catolicismo em um momento em que, ao menos na minha cidade, o conservadorismo religioso era uma marca maior. Nele me vi envolvido até os 18 anos de idade, quando li a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. E daí em diante, até hoje, minha percepção sobre o cristianismo e sobre o catolicismo não é mais a mesma das minhas origens militantes. Sempre vivi, em todos os ambientes em que atuei, exercendo muito mais a minha liberdade crítica que aceitando determinantemente os condicionamentos inevitáveis que a história nos impõe. Talvez, em muitos momentos, esse exercício da liberdade crítica tenha sido enfático demais.

Houve ao menos três momentos em que minhas decepções com o catolicismo se tornaram fortes. Uma, em uma contenda com um líder religioso que, tenho certeza até hoje, defendia uma prática dirigista totalmente contrária às orientações da própria igreja. Isso me valeu quase um processo na justiça, por incrível que pareça. A denúncia pública foi muito bem fundamentada, mas o recurso à perseguição veio como resultado visível. Outra, quando, desamparado por um momento de sofrimento pessoal, tive negado um “direito espiritual”, em tempos em que a prática legalista denunciada por Jesus predominava mais do que a misericórdia. Após este episódio, mais de dez anos depois, surgiu a vontade de uma reaproximação, quando no meu entender eu havia rompido com o catolicismo oficial para ficar com a “igreja de Cristo”. E desta última vez, outra grande decepção. Premido por uma condição histórica de liderança política, vi-me envolvido no dilema em que, mais uma vez, exerci na modéstia do recolhimento sem alardes, minha posição oposta a uma compreensão que sempre considerei anticristã, aquela contra o preconceito tão combatido por Jesus. Nunca houve em mim o alinhamento com a chamada “ideologia de gênero”, abjeto estratagema fundamentalista que serve para inúmeras causas, inclusive a morte de muitas pessoas, alimentada por uma omissão “cristã” inadmissível. E me senti, novamente, tolhido em definitivo do catolicismo oficial. Alguns até me viram como um omisso, desconsiderando a possibilidade de que minha capacidade para o diálogo significasse a tentativa de “convencer o outro lado” de seu equívoco. Sou um estudioso de Paulo Freire já faz décadas, não poderia agir de outra forma senão dialogar. Não obtive sucesso. E mais, fui visto como um defensor das posições oficiais da igreja. E o Plano Municipal de Educação foi aprovado daquele jeito, substituindo gênero por sexo, uma degeneração da plenitude da condição humana à sua dimensão biológica. E continuam ali, a atuar, muitos daqueles cristãos que referendaram essa excrescência anticristã. Minha atuação foi coerente com minha formação. Nunca pedi através de cartas, a qualquer parlamentar, que mantivesse o apoio ao texto original do Plano. Já outros grupos foram lá fazer seu lobby pelo “cristianismo”. Eu acreditava e ainda acredito, que o tempo iria resolver, jurídica, política e cientificamente esta questão. E a justiça já fez seu trabalho. Lá se foi minha tentativa de reaproximação com a igreja, ao menos com a eclesiologia.

Mas o que vem a ser o termo “igreja católica”? Trata-se de um significado muito além do que normalmente as pessoas compreendem. Católica vem de “universal”. Sim, o cristianismo é para todos e todas. Isso está posto na luta de Paulo de Tarso e no dizer evangélico que nos indica que devemos “ir e levar a boa nova a todos e todas”. Esta é a pedagogia do movimento de Jesus, a Paideia Cristã. Meu querido amigo César Nunes tem ministrado uma disciplina na Faculdade de Educação da Unicamp que tem esta finalidade, a de estudar a Paideia Cristã como uma mensagem de amor e humanização para todos e todas.

 E mesmo considerando os percalços da vida, todas as liberdades críticas, todas as idiossincrasias da experiência vital, não posso “cuspir no prato em que comi”. Mas que prato era e é esse? O mesmo prato de Pedro Casaldáliga, de Helder Câmara, Angélico Sândalo Bernardino, de Paulo Evaristo Arns, de Claudio Hummes (que assinou meu diploma de mestrado), de Tomás Balduíno, de Luciano Mendes de Almeida, de Santo Dias da Silva, de Dorothy Stang, de Chico Mendes. Estes gigantes da igreja católica não me permitem fazer esquecer em mim que também sou católico. Não um católico da liturgia fria, de uma comunhão falsa com uma fé contraditória. Mas um ser humano que se sente inserido numa comunidade universal – de amor e fraternidade, contra todo preconceito e toda injustiça – e que na mística que a envolve, aponta um sentido para o existir: viver uma vida digna o melhor que se pode. A transcendência numa imanência, não como aquelas posições panteístas do passado, mas como a participação em um universo real, que converge para a figura de Jesus de Nazaré, como bem nos ensinou o grande Teilhard de Chardin.

Além de tudo, minha passagem pelo Seminário Diocesano Nossa Senhora Desterro, lá naquela distante metade da década de 80, me proporcionou uma direção que antes não vislumbrava, a de estudar filosofia. Padre Paulo André Labrosse foi, em grande medida, a principal referência deste momento. Além dele, vários amigos que permanecem até hoje nas minhas sendas místicas, nas minhas experiências de busca pessoal pelo Jesus de Nazaré. Alguns destes amigos são referências até hoje e me comprazo em tê-los conhecido.

Minha filha Manuela foi batizada neste dia 25 de julho na Paróquia de Santa Isabel, na Arquidiocese de Campinas. Uma igreja simples e linda. Emana serenidade e luz. Minha filha cantarolava o tempo todo, mas não estava alheia aos acontecimentos. O celebrante foi meu querido amigo Padre Charles Lamartine Sousa Freitas, um jovem sacerdote católico estudioso de Santo Agostinho, que vive de generosidade cristã e seriedade acadêmica, condição que em minha época de seminarista aparecia como o cenário que boa parte dos meus amigos de seminário sonhava. Uma mística encarnada e um compromisso com a mudança social pelo vínculo com o conhecimento. Uma fé esclarecida e comprometida com o cristianismo das origens. A razão pela qual resolvemos introduzir nossa filha no universalismo cristão. Há uma possibilidade que a vida aponta para os que desejam ser melhores como pessoas e seguir o paradigma de humanidade apresentado por Jesus de Nazaré. Minha filha merece isso tanto quanto outras pessoas que pertencem ao cristianismo. Um cristianismo aberto, inclusive a outras expressões de fé, com o respeito que todos e todas os/as que buscam esse sentido maior em suas vidas merecem.

Eu não acredito apenas em coincidências. Elas são reais, mas há eventos que nos movimentam na historicidade. Toda a minha experiência como jovem católico foi vivida na Paróquia Santa Teresinha. Aprendi a admirar esta mulher, ícone da expressão religiosa católica, como uma pessoa dedicada a este sentido de amor que vem do movimento de Jesus. Não posso negar, no entanto, que Francisco de Assis, não aquele romantizado, mas o “quase burguês” da Umbria que abraçou a causa da pobreza, lutando contra ela, pela humanização dos pobres e sofredores, me fascina de maneira fundamental. Outra referência, Rita de Cássia, que viveu uma vida de sofrimentos e perdas pessoais, mas que sempre agiu em favor da paz, da solução de dilemas humanos que transcendiam suas possibilidades. A estes, se soma uma quarta referência, que não pelas coincidências históricas, mas pelo decorrer da vida prática, apareceu em minha caminhada. Trata-se da Rainha Santa Isabel.

Em 2018 participei de um evento na cidade de Coimbra, em Portugal. Lá fiquei durante uma semana. Fui conhecer todos os principais locais históricos da cidade, inclusive os dois mosteiros de Santa Clara. Aos pés da colina, na sede do Mosteiro de Santa Clara, a Nova, está uma grande imagem da Rainha Santa Isabel. Seus exemplos de pacificação e de amor pelos pobres convergem com a vida das referências já citadas e “fecham o quadro” de minha percepção como um “cristão independente”, mas acolhido pela “catolicidade” que fundamenta o próprio cristianismo. A Rainha Santa Isabel está sepultada no Mosteiro das Clarissas, mas logo abaixo está o mosteiro dos Franciscanos. Admiro também os ícones sagrados de outras expressões de fé, com o mesmo sentido místico que abraça o amor proposto por Jesus de Nazaré.

Não houve coincidência. Sem saber onde seria, minha filha foi batizada na paróquia que leva o nome da Rainha Santa Isabel. Meu amigo Padre Charles nos encheu de emoção durante a celebração. E quando da proclamação dos nomes dos santos de referência católica, lá estavam Teresinha, Francisco, Isabel. Me vi acolhido, como um “irmão em Cristo”. Minha história pessoal tem semelhança, em grande medida, à vivida pelo meu amigo e exemplo acadêmico, César Nunes. O rapaz que aos 30 anos lecionou filosofia da história no meu curso de filosofia, mais de 30 anos atrás. Ele também um filho de trabalhadores pobres como eu, que como ele mesmo diz, “mudou de condição cultural e econômica”, mas não de classe social. Somos assim, filhos de trabalhadores marcados pelo cristianismo católico, apaixonados pela ciência e pela filosofia e que, felizmente cultivamos muitas amizades sólidas, destas em que se pode ser franco e honesto o tempo todo. É deste batismo, deste cristianismo e destes tipos de amizade que minha filha tem o direito de vivenciar. As amizades dos amigos Cristiane e Maurício, padrinhos da Manuela, duplamente nossos compadres.

Alguns dias de muitas reminiscências importantes. Como a de olhar minha lembrança de batismo, acontecido em 1962, 45 dias após meu nascimento, naquele momento pré-conciliar, na Catedral de Nossa Senhora do Desterro. João XXIII renovaria a Igreja a partir daquele ano. Jundiaí era um decanato pertencente à Arquidiocese de São Paulo. A lembrança do meu batizado foi assinada pelo decano, Monsenhor Doutor Arthur Ricci, sabidamente um homem conservador, que participou de movimentos associados e em apoio ao golpe militar de 1964. O celebrante foi o padre Miguel Schledorn, um alemão salesiano que veio de Campinas e que também atuou em Fortaleza. Do que se sabe, era um homem avançado para seu tempo, daqueles que andava de motocicleta, algo incomum para a maioria dos padres. Como a de olhar a lembrança de Batismo da minha Andrea, assinada pelo grande sacerdote Sérgio Mazzoldi, um italiano líder e superior da Congregação dos Oblatos de Maria Virgem. Padre Sérgio inspirou muitos dos meus amigos progressistas e foi um dos mais importantes sacerdotes a atuar na Paróquia de São João Batista.

Na liberdade crítica que sempre defendi, mas sem perder de vista o que nos mantém vivos: viver o mais próximo da humanidade indicada por Jesus de Nazaré, escrevi este texto. Considerava que um dia ele poderia ser apresentado, na sinceridade que aprendemos a exercer com o tempo. E também na liberdade que se adquire na plenitude da experiência profissional, que não se mede em termos de consequências previsíveis para fins de autopreservação, de uma “prudência Interesseira”. A vida sempre nos coloca diante de opções. Eu sempre escolhi estar em um lado, mesmo com toda a minha limitação humana, meus defeitos e malfeitos. Certamente muitos dos meus percalços podem ser apontados com tranquilidade.

A paternidade, a vida da minha filha, se apresentam como uma esperança de continuidade espiritual, neste ciclo de renovação infinito em busca do Jesus de Nazaré, o Cristo cósmico de Chardin, o Cristo da Libertação de Gutierrez e Paulo Freire, o movimento de Jesus. Tenho certeza de que as minhas referências me ajuízam a dizer o que foi dito, sem perder a humildade de considerar que falhas sempre haverá, aqui e ali, patrocinadas por cada um de nós. E que o cristianismo universal extramuros é maior do que se imagina. Trata-se de uma experiência histórica que vem sendo construída a partir de erros e acertos. Mas o movimento de Jesus nunca mudou. Manuela agora dele faz parte.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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3 Comentários

  1. Meu grande amigo e irmão, Renato Polli, mais uma vez me brinda, bem como a todos que lerem este seu texto de forma aberta, desarmada das armas dos dogmatismos, com uma reflexão densa, fruto também de apontamentos autobiográficos. Um verdadeiro testemunho de que o Espírito sopra onde quer, não onde as autoridades desejam ou permitem. Muito obrigado, Renato, por mais esse aprendizado. Compartilhei com você alguns desses momentos e certas angústias e sei que os percalços nessa trajetória foram reais e, como tais, pavimentaram o caminho. Paz e bem.

  2. Mais uma vez linda matéria compadre. Como é grandioso ler suas matérias, proporcionando momentos de reflexão abrindo mais a nossa mente. Ontem foi um dia abençoado, uma cerimônia encantadora como a pequena Manuela. A igreja de Santa Isabel trouxe uma paz e as palavras do Padre Charles não teve como passar despercebido, quanto amor e carinho. Mais uma vez muito obrigado pela nossa amizade que está mais forte e interligada agora. Deus o abençoe sempre, Cristiane e Maurício.

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