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MARIAS DAS DORES E ALEGRIAS

Quando entra setembro, diz a música, a boa nova anda nos campos. Os ipês estão florindo e vida pulsa em sinais de transformação que eles prenunciam. Depois de um vigoroso inverno, tudo se renova, renasce, se refaz e, porque não dizer, vai se fortalecendo, mesmo contra toda esperança. As estações do tempo são como a dialética da vida. As vezes é preciso que tempos difíceis, como invernos intensos, venham a nos entristecer para que a primavera da esperança brote nos nossos corações.

Gastão Vidigal, pequeno município da região oeste do estado de São Paulo, final da década de 60. Dali partia uma família, em condição de retirante, rumo ao inusitado que a espreitava, numa caminhada sem muitos rumos e, talvez, com as esperanças arquivadas no peito. Uma pequena passagem por Americana, até aportar nas terras de Nossa Senhora do Desterro. Uma família em desterro, paradoxalmente encontrando seu lugar nos braços de uma Maria do Desterro.

Maria das Dores, uma das filhas, vinha embalando em seu seio a continuidade de sua presença no cosmo. Fico a imaginar o conjunto de inquietações e inseguranças que povoavam a sua cabeça. Onde morar?  O que fazer para sobreviver? Onde estava a sua manjedoura? Sim, porque a manjedoura de Maria das Dores sempre esteve a seu favor, na medida da sua enorme fé na vida e em Cristo. Não era à toa que seu nome, dentre as Marias da família, carregava o peso de um sofrimento que é típico para todas as Marias brasileiras, mulheres originárias na pobreza e que labutam para poder repousar a cabeça numa condição de vida melhor. Há uma Maria de Nazaré que também é das Dores, Nossa Senhora das Dores. E esta mulher, no entanto, é para lá das dores como entrega, como resignação. Ao contrário, está sempre cheia de confiança na superação. Porque a superação é a luta, não o resultado.

Milton Nascimento, numa das mais belas páginas da música popular brasileira registrou com maestria sua musicalidade na letra genial de Fernando Brant, que expressou essa condição das Marias brasileiras:

Maria, Maria, é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria, é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca possui
A estranha mania de ter fé na vida

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca possui
A estranha mania de ter fé na vida

Cantei essa música durante anos a fio com meus amigos da experiência musical. E agora esta letra vem  fazer mais sentido. Que peça da arte brasileira poderia representar com mais propriedade a condição de Maria das Dores? A “minha” Maria das Dores é a mesma mulher das lutas de suas homônimas, como a Maria da Penha, que articulou a proteção de todas as Marias e de todas as mulheres, com a lei que leva o seu nome. É a Maria que, apesar das Dores, constrói e vive também alegrias. O Artista está repleto de razão.

Maria das Dores conseguiu um lugar para colocar a cabeça, depois de tantas idas e vindas e além de sua primogênita, deu ao mundo ainda mais outras três mulheres. Que alegria. E é de se admirar que mesmo diante de tantas contrariedades, todas essas suas filhas se formaram, conseguiram à sua maneira adotar um projeto de vida e sempre mantiveram valores éticos sólidos – aqueles provenientes da sua sensibilidade e da sua inteligência. Maria das Dores estava à frente de seu tempo, porque independente, sem preconceitos de nenhuma natureza, tornou-se o verdadeiro coração de mãe de toda a família. Quem não precisava ou a ela recorria?

Eu cheguei por último. Não sei definir que tipo de Maria ela foi para mim. Eu digo sempre que ela foi minha segunda mãe. Além de suas meninas, dizia que tinha os seus meninos, os genros. Tive a sorte de ser um deles. Sua acolhida foi surpreendente, nunca condicionada, sempre aberta. Realmente me tratava como um filho. Para mim foi uma atitude renovadora. Nunca ouvi um reclamo, uma cobrança, uma interferência em meu relacionamento com sua filha, minha Deia, apesar de eu não ser propriamente um exemplo a ser seguido.

E a vida queria mais dores na vida de Maria. As dores da passagem, um percurso de despedida de tudo de bom que construiu, suas alegrias. Das filhas, dos genros, dos netos e da neta Manuela, minha filha. Felizmente ela pode participar da celebração do batizado da nossa Manu. A mesma doença que em dezembro de 2000 levou minha mãe, agora levou minha segunda mãe. Minha última mirada em seu semblante se deu com minha filha no colo. Não foi possível segurar a emoção.

Acompanhei atento o depoimento final de minha cunhada, durante a despedida da nossa Maria das Dores de Oliveira Fonseca, minha sogra. Ela terminou dizendo que foi uma honra ter sido sua filha. Fiquei pensando no que eu poderia dizer sobre o que eu sinto por ter sido um de seus genros. E chego à conclusão de que, apesar da grande vontade de falar mais sobre a Maria, a mãe de todos nós, filhas, genros, netos, neta, irmãs, sobrinhos, cunhado e mãe, não tenho competência para dizer algo de uma pessoa melhor do que eu, além do que eu disse até agora.

Talvez apenas, que eu tive o privilégio de ter duas mães. Maria, sendo minha sogra, me acolheu como mãe. E essa condição que faz parte da vida de todas as Marias brasileiras, a capacidade de misturar a dor e a alegria, inclui viver anos de relações amorosas com as pessoas ao seu redor, como eu, com o acolhimento fraternal que só os seres humanos superiores podem oferecer. Ela adorava o Roupa Nova, o cantor Paulinho que faleceu recentemente. Há uma canção deles, uma regravação que diz:

Bem maior do que os mares mais profundos
Bem maior do que os campos que eu vi
Bem maior que o teatro das estrelas
É meu amor por ti

Como a força infinita das rochas
Tem mais luz que o sol põe no rubi
Muito mais do que o verde das matas
É meu amor por ti

Assim como no inverno
E o sol quente no verão
Eu vou ser a primavera
Do teu coração

Foi assim que escrevemos nossa história
É o livro mais lindo que eu li
Uma flor azul que me traga na memória
O meu amor por ti
O meu amor por ti

Bem maior do que os mares mais profundos
Bem maior do que os campos que eu vi
Bem maior que o teatro das estrelas
É meu amor por ti

Assim como no inverno
E o sol quente no verão
Eu vou ser a primavera
Do teu coração

Foi assim que escrevemos nossa história
É o livro mais lindo que eu li
Uma flor azul que me traga na memória
O meu amor por ti
O meu amor por ti

Talvez seja assim que eu queira expressar a minha gratidão. Talvez seja assim que eu deseje honrar sua memória, com uma constante devoção amorosa à sua pessoa. Torço sinceramente para que a ciência, na qual me vejo envolvido como um acadêmico, um dia chegue a encontrar um mecanismo de superação desta enfermidade. Há tantos esforços científicos hoje em relação à pandemia – que tanto nos afastou uns dos outros – que me fazem sentir que há esperanças também neste aspecto. Desta forma não perderíamos nossas mães assim, tão abruptamente. Minha Eva e minha Maria das Dores se foram. Isso dói muito. Mas me sinto solidário às minhas cunhadas, à minha companheira de vida, aos meus cunhados, aos meus sobrinhos, às tias irmãs da Maria, à bisavó, ao meu sogro, ao tio-cunhado, aos primos e demais parentes. Eu cheguei por último e certamente para eles a dor é mais doída.

Por fim, ela me disse antes de partir que me daria uma jabuticabeira que está num vaso, para que ela fosse seu legado mais visível para a minha filha Manuela, sua neta. Na sua pureza de gente grande, Maria não se dava conta de que seu legado é e será muito maior, porque seu amor pela vida e pelas pessoas nos faz parecer tão pequeninos neste momento.

Recorro todos os dias aos meus parceiros espirituais de devoção, a quem peço que a acolha nesta reintegração ao universo e que ela possa conhecer, enfim, minha mãe que já está lá no outro plano. E que elas agora possam compartilhar, alegres, sorrisos ternos em direção a todos e todas nós que aqui ainda estamos a viver as dores e alegrias da existência.

 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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8 Comentários

  1. Que lindo texto, que profundo e emocionante! Que o legado da dona Maria se eternize e que Manu veja e sinta nas jabuticabas vindouras a doçura desse amor, obrigada por compartilhar.

  2. belíssimo texto. D. Maria está muito feliz pelo legado que deixou.

  3. O seu texto é amoroso, nele é possível perceber a grandeza da Maria , que Manu possa sentir a doçura desse amor através das jabuticabas e do legado que ela deixou!

  4. Que sensível e linda homenagem, Zé.

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