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Entre o amor à política e a política do amor

Paulo Freire está entre os pensadores brasileiros que mais sofreram críticas provindas de alguns setores da esquerda acadêmica, que vislumbravam em suas ideias certo romantismo descolado da realidade e uma amorosidade ingênua, desprovida de consistência teórica e efetivamente contributiva para engendrar processos transformadores. Talvez o professor Dermeval Saviani tenha sido o mais elegante dos teóricos da educação ao analisar a importância de Paulo Freire para a educação brasileira, colocando-o no patamar de um educador da esquerda que transitou entre várias fontes de pensamento. Falar em amor, nem sempre causa aderência.

É possível que muitos ainda se perguntem sobre a finalidade de discutir o amor em meio a uma crise de racionalidade e uma demonstração histórica cabal das contradições de classe que se configuram no contexto de uma pandemia mundial. O que fazer com o amor numa situação como essa? De qual amor, afinal, estamos falando? O que se pode falar da relação entre amor e política?

Faz mais de vinte anos, em uma aula com um dos maiores professores de ética do Brasil, Pedro Göergen, que discorria sobre as relações entre ética e política no pensamento de Aristóteles, que percebi que haveria sim o que falar sobre o amor na relação com a ação política. Dizia Göergen que Aristóteles compreendia a ética como um tratado político e que ambas, inscritas no esforço racional de pensar a vida em sociedade teriam a mesma finalidade: o bem do ser humano. Se considerarmos a ética como o campo da racionalidade que pensa a possibilidade da universalização de valores – alguns autores como Habermas diriam que a partir de uma racionalidade comunicativa – caberia perguntar: seria o amor um valor ético, um princípio, ou um sentimento que mobilizamos para lá e para cá a partir de determinados interesses pessoais e de grupos?

Se inserirmos o amor no prisma de uma racionalidade filosófica, como um princípio ético mobilizador da prática, o que poderíamos pensar sobre a operacionalidade de sua relação com a política? Se entendermos a política como o esforço pelo bem comum e incluirmos o amor no espaço da ética – um tratado político com a mesma finalidade da política, o bem do ser humano – estariam o amor e a política intimamente relacionados?

Procurando absorver elementos de análise, ao menos parciais, desenvolvidos por estudiosos sobre a relação entre amor e racionalidade,  poderemos indicar algumas pistas e respostas provisórias a esta questão.

César Nunes, um dos mais destacados filósofos a pensar a obra de Platão, em sua tese de livre docência, publicada em 2017 com o título “Platão e a dialética – entre a filosofia do amor e o amor à filosofia”, traz contribuições importantes para este debate. Nos indica que no diálogo Lysis, Platão “define que o amor não é posse ou gozo de todas as coisas, uma espécie de insaciabilidade progressiva, mas sim a busca, o desejo de subir sempre mais, a aspiração à Alma do Bem.” (NUNES, 2017, p. 137)

Ao analisarmos, a partir das condições históricas do presente, quais situações culturais a partir das quais Platão engendrava suas posições teóricas, talvez tenhamos a tentação de classificá-lo como conservador. Para um filósofo que pensava que apenas os homens proprietários seriam dotados de virtudes intelectivas, desprezando outros grupos sociais a quem atribuía poucas habilidades para o governo da pólis, numa suposta condição natural das virtudes sociais, seria impróprio nos referenciarmos em um autor como este. Mas ao indicar o amor como método filosófico, Platão nos mostra caminhos importantes para pensar, a partir do horizonte da racionalidade, quais as suas relações com a política.

O amor para Platão está ligado às capacidades intelectivas e, portanto, não há motivos para desmerecê-lo (o amor) em relação à sua presença no debate de ideias. Paulo Freire não cometeu nenhuma falha teórica. Alguns ainda insistirão em apontar o idealismo contido nas perspectivas platônicas, mas para esta questão, deixaremos considerações mais concretas ao final desta reflexão, quando utilizaremos o autor de preferência do campo da esquerda.

Está claro, a partir dos estudos de César Nunes, que para Platão, o amor está relacionado à ética e que, portanto é um valor, um princípio, já que “se o Amor é função da Alma enquanto gera a Virtude e enquanto é um princípio do conhecimento do Verdadeiro, isso depende do fato de que a função essencial e própria do Amor é a intelecção.” (idem, p. 153)

Posto desta forma, se o amor é ao mesmo tempo virtude – um princípio ético – e racionalidade, não há como dissociá-lo da política. Ele tem como função “inspirar e nutrir a alma, pela intelecção, na direção do conhecimento verdadeiro.” (idem, p. 161) Ou dizendo de outra forma, “o Amor é um método Moral e intelectual no qual se unem potência motora e potência cognoscitiva da nossa alma e que ele exprime o poder da ordem e da medida sobre coisas que, por natureza, são desordenadas.” (ibidem) A intelecção, a ação e a virtude estão intimamente entrelaçadas para um efeito de transformação que se pretende efetivar.

Se a política é o cuidado da pólis, cuja responsabilidade inclui todos os cidadãos, não há menos racionalidade ou menos amor que se possa considerar para que este cuidado, enquanto busca, seja concretizado, já que a ética é o bem e sua busca. Ao buscarmos o bem coletivo, há responsabilidades intelectuais e morais que devemos considerar.

Estamos até agora no plano da política com “p” maiúsculo, no quadro de um ideal moral e intelectual. Há muito mais facticidade e pragmaticidade em uma de suas esferas, a política institucional. Esta dimensão tem ficado à margem do debate intelectual e moral. Falta-lhe a disposição do cuidado e do amor.

Neste momento, recorro a outra referência. Erich Fromm escreveu um dos mais belos tratados sobre o amor humano. Em “A arte de amar”, eleva e conceitua o amor nestes termos: “O amor é uma atividade, e não um afeto passivo; é um `erguimento`e não uma `queda`. De modo mais geral, o caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de tudo, consiste em dar, e não em receber.” (FROMM, 1986, pp. 44-45) Aqui ele salva as pretensões amorosas de Paulo Freire (o amor é um erguimento e não uma queda) e indica uma definição de amor que pode dar o que falar.

O dar envolve ambiguidades e complexidades. Fromm analisa o equívoco recorrente de que dar é ser privado de alguma coisa, ter de abandonar uma condição, uma situação, se sacrificar. Anota que o caráter mercantil, ao invadir nosso modo de pensar, influencia esta percepção de que não se pode dar sem receber algo em troca. No universo político temos a deturpação de um ideário Franciscano, a suposta orientação de que “é dando que se recebe”. Uma comprovação desta inverdade está posta numa célebre passagem evangélica em que Jesus diz, ao observar as contribuições dadas como oferta no templo, que uma pobre viúva deu duas moedas pequenas e que esta contribuição foi maior do que a de todos os outros, porque aquela pobre mulher deu tudo o que possuía. Francisco de Assis, certamente não contabilizava sua caridade, mesmo que ela tenha sido deturpada, inclusive em sua própria e conhecida oração. O retorno até pode ocorrer, mas como fruto do amor compartilhado e não como prévia negociação.

Erich Fromm acentua que os indivíduos movidos por esta lógica mercadológica não conseguem se dispor a dar. Mas há uma lógica oposta, por vezes também relacionada a uma certa ideia de sacrifício, que precisaria ser melhor considerada – não como despojamento absoluto, mas como um ganho em potência – que é a que propõe que o dar é prova de força daquele que dá, a prodigalidade, uma satisfação e uma alegria motivadas não por uma privação, mas porque o ato de dar indica a vitalidade de quem dá. O homem avaro, que contabiliza perdas ao dar é, psicologicamente falando, um fraco.

E daqui decorre a linha tênue que separa os modos tradicionais da política institucional dos modos assertivos da unidade de grupos em torno de uma noção de amor que vai além das supostas perdas no jogo das aproximações e separações. No campo do humano, sugere Erich Fromm, o que pode dar uma pessoa a outra, senão a sua alegria, seu interesse, sua compreensão, seu conhecimento, seu humor, sua tristeza, as expressões das manifestações que cada um vive em si? Isto não significa sacrificar a vida em função de outro, mas enriquecer a outra pessoa a quem se dá, valorizar sua vitalidade, num processo em que dar se constitui numa “requintada alegria”. Ao oferecer nestas condições, inevitavelmente haverá retornos, sobretudo os retornos morais e o enriquecimento das condições intelectivas para pensar o que precisa ser modificado, já que “o amor é uma força que produz amor; impotência é a incapacidade de produzir amor.” (FROMM, 1986, pp. 47-48)

E, finalmente, chego ao ponto. Já faz ao menos uma década que me insurjo contra lideranças do espectro da esquerda, talvez de maneira ácida demais, por conta de sua presunção política. Algo que sempre me pareceu contraditório vindo deste setor político. Antes imaginava que apenas alguns dos mais expressivos líderes da esquerda brasileira incorriam neste comportamento. Agora considero que há poucos que escapam. As dificuldades que ora vislumbramos para uma unidade na ação, como uma necessidade decorrente de um contexto grave de violação de direitos e de destruição dos processos democráticos, são em grande medida devido à esta falta de amor, à falta de ensaios de reconhecimento de virtudes, acertos e desacertos. Os ataques mútuos, lado a lado, não servem à causa da amorosidade política, que deveria ser condição sine qua non para as virtudes de uma esquerda democrática.

Não é de hoje que certos dogmatismos teóricos e práticas de desaproximação impedem a reflexão. Edward Thompson rompeu com o partido comunista inglês justamente devido à intransigência teórica. Quem mais aproximou a teoria da vida prática dos trabalhadores ingleses senão os historiadores da historiografia social inglesa, como ele próprio e seu amigo Eric Hobsbawm? No nosso caso, não há falta de referenciais intelectuais nos vários segmentos da esquerda. O que falta é incidência da reflexão na prática política. O que falta é a capacidade de ceder e dar. O que falta é amor, pensado a partir das considerações postas anteriormente,  no plano de uma racionalidade e não como sentimentalismo sem sentido. A amorosidade proposta por Paulo Freire nunca foi incorporada na prática. Aliás, sua recusa em se manter na política institucional talvez tenha se dado justamente por causa disso. Somos corroídos por uma máquina de interesses mesquinhos, institucionais ou travestidos de institucionalidade – porque patrocinados por pessoas e grupos que descaracterizam a amorosidade como racionalidade política e a transformam em barganha eleitoral, ou mesmo interesse pessoal.

Se os mais exaltados preferirem, podemos voltar ao clássico dos clássicos, citado como belo pensamento por Erich Fromm. Esta é a referência “menos idealista” do que Platão, à qual me referia anteriormente. Fromm, como membro da Escola de Frankfurt, não poderia deixar de se referir a uma passagem escrita por Karl Marx, que reproduzo:

“Imaginai – diz ele – o homem como homem e sua relação com o mundo como uma relação humana, e só podereis trocar amor por amor, confiança por confiança, etc. Se quiserdes gozar a arte, devereis ser uma pessoa de preparo artístico; se quereis ter influência sobre outras pessoas, devereis ser uma pessoa que tenha sobre outras pessoas influência realmente estimuladora e promotora. Cada uma de vossas relações com o homem e com a natureza deve ser uma expressão definida de vossa vida real, individual, correspondente ao objeto de vossa vontade. Se amais sem atrair amor, isto é, se vosso amor é tal que não produz amor, se através de uma expressão de vida como pessoa amante não fazeis de vós mesmo uma pessoa amada, então vosso amor é impotente, é um infortúnio.”

(“Nationalökonomie und Philosophie”, 1844, publicado em Die Frühschriften de Karl Marx, Alfred Kröner Verlag, Stuttgart, 1953, pp. 300-301. Tradução de Erich Fromm em A arte de amar, 1986, p. 48.)

         Se o despojamento de preconceitos, – muitos deles fomentados não no próprio campo da esquerda – não forem superados, se uma unidade programática e a partir de princípios sólidos não for corroborada por uma perspectiva amorosa, não sairemos desta crise que se abate sobre nós. É preciso ouvir mais as vozes que partem do movimento intelectual, de setores políticos mais afeitos a congregar, que indicam esta necessidade. A condição de uma abertura em dar depende do caráter de cada pessoa, a superação da “onipotência narcisista”, a acentuação da postura do cuidado, da responsabilidade, do respeito e da busca do conhecimento conjuntamente. De um amor cego à política, traduzido por atitude corporativa e pouco aberta a criticas, nada provém. Só uma política do amor, enquanto desprendimento, abertura, generosidade em abrir espaço, poderá provir ações concretas de mudança.

        Se na esquerda não houver essa disposição, as lideranças continuarão se acusando mutuamente – e mesmo que haja motivos concretos para isso é preciso reconsiderar aproximações. Não se trata de negociar posições no pleito eleitoral, uma expressão mesquinha e apequenada do que é construir soluções políticas viáveis, como um projeto de sociedade humanizada, inclusiva, ambientalmente saudável, eticamente equilibrada no campo econômico, participativa nos meios de definição das ações transformadoras. Espaço há. Amor há. Conhecimento há. Falta disposição e coragem.

        Por fim, termino com um trecho poético de César Nunes:

“Nessa senda, o amor e a vida, a morte e a esperança se entrelaçam, tecendo a teia de nossas necessidades e de nossos desejos, buscando integrar a mortalidade de nossas dimensões com a grandeza e amplitude de nossas utopias. Ama-se o Amor, essa complexa força de recriação e de impulsionamento, de arrebatamento e de convencimento, da Vida e de sua graça, leveza e efeméride. No amar o Amor realizamos nossa híbrida natureza, a de sermos deuses em nossas origens, posto que nossa alma é da mesma matéria de deus e de nossa precariedade carente, de reconhecer como incompleta e faminta, a cada dia e momento, nossa existência subjetiva e social.” (NUNES, 2017, p. 68)

 

Referências:

FROMM, Erich. A Arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.

NUNES, César. Platão e a dialética – entre a filosofia do amor e o amor à filosofia. Campinas: Brasílica, 2017.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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Um Comentário

  1. João Bosco Alves de Amorim

    Cada vez que delicio das suas crônicas, sinto o quanto é bom tê-lo como amigo, mas principalmente como aprendo com este seu jeito simples e profundo de testemunhar o que realmente importa nesta caminhada de compromissos e esperanças.

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