Home / Política / POR QUE EU VOTO EM LULA

POR QUE EU VOTO EM LULA

Quando nasci meus pais moravam num quarto dos fundos da casa da minha avó materna. Era uma vida difícil, não de extrema pobreza, mas de muita luta e sofrimento. Sem nenhuma das comodidades tidas como normais hoje para famílias de classe média baixa, eles se esforçavam como trabalhadores operários, para manter um mínimo de dignidade. Dos direitos educacionais, apenas o antigo Grupo Escolar.

Com muito custo meu pai conseguiu comprar um terreno muito pequeno em outro bairro, onde construiu uma casinha com recursos tomados por empréstimo de um credor inescrupuloso. O resultado foi ter de, depois de poucos anos, vender a casa para saldar dívidas contraídas para realizar a obra. Mas a solidariedade entre os sofredores era uma marca que caracterizava o povo simples, agarrado a preceitos morais sólidos de honestidade e compaixão. O pai de um dos meus tios, cunhado de meu pai, teve papel importante nesta empreitada, construindo a casa gratuitamente. Meu pai, ao saldar a dívida com o credor, foi ter com ele para pagar pelos préstimos dos serviços de pedreiro. Ele recusou.

Voltamos para o bairro de origem. Meu pai adquiriu uma pequena casinha com os recursos que sobraram, mas era uma casa minúscula, com quarto e cozinha, um banheiro do lado de fora. Ele não desistia. Vendeu esta casa e fomos morar de aluguel num porão. Ali ficamos durante quase dois anos. A esta altura eu já estava com 6 anos de idade, iniciando minha vida escolar.

Um tio sugeriu ao meu pai que com os recursos da venda da casinha comprasse um novo terreno em um bairro que na época ficava “no fim do mundo” e que fosse até à Caixa Econômica Federal tentar um empréstimo para construir outra casa, com financiamento provindo do antigo BNH. E assim foi. Nos mudamos para esta nova casa cerca de um ano e meio depois.

No novo bairro vivi toda a minha infância e juventude. Aos oito anos fiz minha primeira comunhão. Aos 11 fui crismado. A partir daí participei de uma comunidade de perseverança. Aos 14 ingressei numa comunidade de jovens. Aos 18 já era uma liderança do movimento de jovens católicos. Li pela primeira vez a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. As leituras obrigatórias eram os documentos sociais da igreja católica. Aos 22 já era membro da coordenação diocesana da pastoral da juventude. Aos 23 me tornei seminarista. Desisti. Cursei filosofia posteriormente e me tornei professor. Minha vida escolar na educação básica não foi fácil. Parecia uma sina familiar que terminássemos os estágios de formação numa defasagem idade-série. Meu pai aposentaria por invalidez aos 36 anos de idade. E continuaria na informalidade, porque não era fácil manter a vida. Minha mãe era o esteio moral e afetivo da casa.

Na segunda metade da década de 80 me filiei ao Partido dos Trabalhadores, onde militei durante 21 anos, tendo sido membro do diretório local e da executiva, ocupando a função de secretário de formação política. Estive candidato a vereador por este partido em duas oportunidades, tento sido um dos suplentes em 2000. No início dos anos 90 fui uma das lideranças do movimento sindical de resistência de professores estaduais. Em 2011 já havia migrado para o PSOL, partido no qual militei por pouco mais de um ano. Em 2015 me filiei ao PCdoB, já na condição de Secretário Municipal de Educação. Em 2020 tive uma rápida passagem pela Rede Sustentabilidade. E voltei ao PCdoB agora em 2022. Muitas amizades e consideração por todas essas agremiações, imprescindíveis para as lutas democráticas.

Creio que mantive uma coerência. Esta coerência se deve à minha condição de classe. Como diz um grande mestre, ao considerarmos uma ascensão na condição cultural e econômica, não devemos abdicar da condição de classe. Sou e sempre fui filho de operários. Fui um atuante militante católico engajado na defesa de um cristianismo socialmente comprometido. Fui um professor ativo no movimento sindical. Fui e sou um militante partidário. Não seriam motivos suficientes, ligados à minha condição de classe, para votar em Lula? Um homem que, com qualidades e defeitos, representa tudo aquilo que é a maioria do povo brasileiro, em sua luta pela sobrevivência, que progride na consciência e no compromisso com a emancipação possível?

Já fiz críticas, já fiquei inconformado com práticas e comportamentos das esquerdas partidárias. Mas seriam esses motivos “pessoais” maiores que os interesses do povo? Seriam maiores que a obrigação do compromisso diário – na sala de aula e na vida privada – com as causas sociais que sempre me moveram na vida? Com minha condição de classe?

Essa identificação com o Lula imaginário – não o homem – fruto de uma crença espiritual/intelectual forte na transformação da vida dos homens e mulheres deste país, me faz não só aderir a esta campanha, mas do meu jeito, defendê-la. Sei que muita gente já se sentiu indignado com situações que fizeram com que a impressão sobre a militância da esquerda não fosse boa. As reconheço e acho legítimas. Eu mesmo também as nutri. Mas neste momento não há que se apegar a estas impressões, porque são apenas fruto da incapacidade humana em SER MAIS, como dizia o mestre Paulo Freire.

Eu acredito neste Lula imaginário. Não o Lula messiânico, que sinceramente sempre achei não existir e pouco contribuir para a transformação que desejamos. Ele é um homem, mas além de tudo, é imaginário porque simboliza o que é a vida de todos e de todas os/as sofredores/as, os pobres e marginalizados/as deste país. É neste Lula que eu voto. Ele nunca saiu da minha cabeça e do meu coração, mesmo sabendo da existência do homem LULA. E quem de nós, homens e mulheres, depois de toda a farsa das elites em tentar destruir a imagem do Lula imaginário, poderíamos nos furtar da tarefa de revivê-lo? Certamente há leituras sociológicas profundas que podem ser feitas sobre os motivos que levam uma parte das pessoas que, na mesma condição de classe, foram aculturadas por uma ideologia do ódio.

Se Lula vencer as eleições – e torço por isso -, haverá um longo caminho a percorrer, sobretudo nos planos da educação e da cultura. Espero que este caminho não esteja contaminado com discursos de formação profissional ou de cultura como mercadoria.

O PT nos legou personalidades indispensáveis, muito embora nem sempre as tenha valorizado devidamente. Paulo Freire é uma delas. Desejaria ver uma educação humanizadora, crítica, acolhedora, para além dos discursos quantitativistas e avaliativistas que denegam o seu caráter emancipatório e de formação para a cidadania.

Como filho e neto de operários, cumpro meu dever de classe votando em Lula. Faço juz à minha trajetória no campo da esquerda. Faço juz à minha formação católica de origem – aquela que é comprometida com a mudança social. Trata-se apenas de uma coerência em mim, a despeito de tantas contrariedades que a atual fase histórica enseja, sobretudo a contrariedade de ser professor de filosofia em meio a tanta ignorância política.

A intolerância se combate não com tolerância, mas com a firmeza que induz à consciência de classe. Aqueles e aquelas que nos interpelam a partir do plano da ignorância, deverão assumir a responsabilidade pelo quadro que têm nos legado. Não há que “passar o pano”. Apenas compreender e orientar os passos para que esta ignorância seja vencida no redimensionamento da luta política, no enaltecimento da cultura superior para todos e para todas. Meu grande referencial teórico no campo da história, Edward Thompson, diria, uma “política vista de baixo”.

Espero que este Lula imaginário se materialize em votos. Que uma política vinda de baixo, sonho de Paulo Freire, seja aprimorada nos anos do governo Lula. Não é fácil conciliar tensões de classe em um governo de feições populares, sabemos disso. E certamente Lula sabe disso. Mas que haja mais espaço para que os que mais contam, sejam incluídos. Não apenas no plano do consumo e do crédito, mas cada vez mais nas decisões sobre os rumos da vida deste país. Somos filhos e filhas desta crença política. Não podemos deixar de defendê-la com paciência. Uma paciência histórica que é típica das pedagogias humanizadoras.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

Check Also

O CORAÇÃO DO BRASIL

Lendas de raças, cidades perdidas nas selvas No coração do Brasil Contam os índios de …

Um Comentário

  1. Edílson José Graciolli

    Motivos mais do que justos e suficientes para esse voto.

Deixe uma resposta