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No meio do Paranapanema e no centro da vida

Da longa jornada de convivência com meu pai, haveria muito por dizer, registrar destacar. Assim como no dia a dia da vida somos requisitados a escolher, assumir um caminho, pensei bastante nos últimos dias sobre o que escrever. O que eu deveria destacar, o que seria digno de maior ênfase, o que ele gostaria que eu dissesse? De tudo o que na nossa relação se construiu, há um aspecto que sempre me encheu de alegria. Ouvir suas histórias. Ele relatava suas experiências, desde aquelas relacionadas ao trabalho, à família, como às amizades, à sua relação com a cidade, suas leituras. Tenho registros de muitas conversas e certamente tudo isso irá para o papel em algum momento. Não fossem suas memórias narradas com humor e capacidade de interpretação, muito do que sei teria sido deixado no esquecimento.

Creio que a maior homenagem, enquanto a preservação de um legado, foram esses registros feitos com carinho por mim e que se tornarão páginas para serem lidas. Eu já tinha escrito um capítulo de um livro organizado pelo meu amigo Márcio Martelli (Meu pai, meu herói) em 2008, cujo título é “Adorno-te com louros”, numa referência ao nome do meu pai, Lourenço (aquele que é laureado com louros). No entanto, fiquei aqui imaginando o que mais o representaria neste momento de partida. Que gosto pessoal, que emoções algo qualquer lhe suscitava, que paixões pessoais, enfim ? E devo confessar, desde o início dessa minha busca por um caminho que pudesse direcionar estas minhas palavras veio à memória uma fotografia. Esta que ilustra este texto.

Meu pai adorava pescar. Tanto que no início do casamento ele até deixava minha mãe na mão e saia com amigos para ir ao encontro de seu lazer favorito. Para estas empreitadas havia sempre muitos e próximos amigos. Boa parte deles já estão pescando em algum outro lugar do cosmo.

No início dos anos 2000, eu e ele fomos desfrutar de merecidos dias de descanso, em duas ocasiões diferentes, na cidade de Campina do Monte Alegre. Ali no distrito de Saltinho, à beira do Paranapanema, meu tio Arthur Fachini tinha uma linda Chácara e também um rancho que pertencia aos sócios da Paulicéia. Meu avô se deliciou ali diversas vezes, sentado naquele patamar de madeira do rancho, com suas pescarias inúmeras. Além dele, vários amigos do meu tio e, dentre eles, o ex-chefe do meu pai na Companhia Paulista de Estradas de Ferro, Jayme Schenckel, falecido recentemente, que teve papel fundamental na sua formação.

Fomos pescar no meio do rio, de barco. E num destes lampejos de historiador (ou de filho atento), que só depois a vida mostraria importância, registrei esta fotografia. Ela expressa meu pai absorto em seu prazer de olhar a natureza, tão bela e infinita. Ele amava viver. E este foi o maior legado que me deixou. No meu último encontro com ele, já sem conseguir quase falar e com visível sofrimento, ele balbuciou uma palavra que, imediatamente, eu e a cuidadora que o acompanhou nos últimos meses entendemos perfeitamente: “tristeza”. A tristeza dele, interpretei, não era propriamente o medo da morte, mas o sentido de perder o bem maior que possuía, a vida. Uma vida integrada a esta natureza que ele tanto amava. Prova disso foram as décadas de dedicação à sua pequena chácara, onde plantou árvores e flores, onde construiu sua pequena casinha acolhedora e bucólica, conservada com esmero até onde foi possível. O encantamento dele e de minha mãe pelo local foi imediato, quando viram aquele pequeno riacho ao fundo do terreno. Compraram a pequena chácara, naquele local inóspito e distante, onde nem havia casas. Ali também houve pescarias, encontros, felicidade.

Foram semanas, meses, anos se dedicando a fazer daquele pequeno espaço um paraíso possível. E era. Amassamos muito barro naquela estrada com a Variant verde, com meu Passat amarelo. Havia quase uma liturgia semanal, ao menos no início, de que toda a santa quinta-feira íamos juntos, pelo menos eu, ele e minha mãe, “trabalhar” na chácara. Acredito que a tristeza dele esteja mais relacionada a perder este tesouro que a natureza nos oferece, o poder viver. Dela podemos fazer muitas coisas. Podemos realizar, tentar, construir. E também podemos não conseguir, sofrer, patinar. Mas é justamente aí que reside a riqueza do processo. Como diz o apóstolo Paulo; “ó morte, onde está a tua vitória?” Ou ainda, a marcante expressão evangélica que diz que “há vida em abundância” para todos e todas. A perenidade da existência não se resume à materialidade.

Por fim, diz uma lenda familiar que meu pai tinha uma postura diante da vida muito parecida com a de seu avô materno. Ambos seriam homens conciliadores, apaziguadores de tensões, que não gostavam de ver as pessoas se desentendendo. Claro que ele próprio, como ser humano que era, também deve ter se desentendido com muitas pessoas. Mas sua disposição parece realmente ter sido a de não guardar mágoas, de relevar, de se reconciliar. Sinceramente eu creio que eu nunca cheguei aos seus pés neste quesito. Sempre achei que as responsabilidades (as nossas e dos outros), quando falhamos, não deveriam ser esquecidas, mesmo que perdoadas. Meu pai era um homem sábio e de espiritualidade elevada. Nunca praticou nenhuma religião em especial, mas se deixava atravessar por um sentido de transcendência em profunda imanência. Viveu a materialidade com um significado profundo. E é isto que esta foto representa. Ela mostra o como neste momento especial, no meio do Paranapanema, durante a atividade mais prazerosa para ele, olhava o todo e nele se incluía. E se incluiu.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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6 Comentários

  1. Que linda matéria🥰 seu pai com certeza, onde estiver, vai amar essa homenagem.

  2. Maria de Fátima Dias Espina

    Nossa Primo que linda homenagem com certeza o tio Lorenço está muito orgulhoso de você Parabéns eu amei e me emocionei muito abraço.

  3. Linda e justa homenagem. Parabéns também a ele pela vida que teve.

  4. SUELI ESPINA DE SOUZA

    Uma lembrança linda demais na eternidade ele está sentindo muito orgulho de tudo como sempre sentiu principalmente de sua familia digno de em texto maravilhoso parabéns

  5. O maior legado é o exemplo, parabéns Sr Lourenço , descanse na paz que semeou .

  6. Felicidade maior de ter tido um pai, como o amado tio Lourenço, talvez só seja superada pela abertura do seu texto: “Da longa jornada de convivência com meu pai”. Bjão e saudades
    P.S. Quantas lembranças queridas de pessoas amadas presenteds no texto.

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