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O NATAL E O SONHO

Lá naqueles longínquos anos 70 e 80 eu e muitos amigos e amigas vivemos um sonho de juventude. Durante mais de uma década fomos atravessados pelo sentido religioso do cristianismo católico. Nas comunidades de jovens vivíamos de alguma maneira uma experiência de coletividade que nos arrebatava. O Natal era um momento especial. Uma das práticas mais emblemáticas e significativas era a de subir na torre da Igreja da Paróquia de Santa Teresinha, naquela noite especial, para tocar o sino, à época de forma tradicionalmente manual.

Muitos natais e finais de ano eram compartilhados com alguns desses amigos inseparáveis.  Nem mesmo as nossas famílias estavam tão próximas nesta noite tão significativa. Antonio Pupo, João Aguiar, Antonio Donato Liba, Vanderlei Franzoni e em alguns outros momentos Edilson Graciolli, Angela Perobelli, Ednilson Graciolli, Claudio Romanato, Jurandir Pinto, Paulo Sérgio Sarmento e tantos outros e outras pessoas queridas estavam conosco. Rodar a cidade naquele fusquinha do Toninho Pupo significava uma perenidade do afeto. Havia uma amálgama amorosa que nos juntava.

A juventude que essa vida traz, a linda juventude, marca indelével na nossa alma, vai ficando para trás. E tantos natais posteriores foram solitários, mesmo às vezes estando acompanhado. Faltava um algo mais. Evidentemente a família sempre foi um porto seguro, mas a vivência da mística natalina, ao menos para mim, estava para além deste espaço fundamental.

Desde o início dos anos 80 a percepção sobre o sentido do Natal passou a ser menos mística enquanto misticismo, para se tornar a materialização de uma perspectiva teológica fundamente: qual o sonho de Jesus? A busca desta resposta nos levou a conflitos que levaram a rupturas com a igreja. A ruptura com a aceitação passiva dos dizeres prontos e acabados, a ruptura com o discurso moral arraigado, a ruptura com os rituais frios e mecânicos. De certa maneira, talvez sem paciência, nossas críticas se tornaram ácidas, mas o cerne da questão era viver mais concretamente o cristianismo, já que estas práticas com as quais rompíamos parecia-nos contrárias ao sonho de Jesus.

Houve muitas tentativas de reconciliação posteriormente, todas sem êxito, porque aquele sonho que vários de nós perseguíamos parecia ainda não estar presente nos abraços e afagos que tanto desejávamos, mas que efetivamente não vinham. O discurso moral embebido em certa ortodoxia sempre foi uma barreira. Alguns amigos, até recentemente, sugeriram que a igreja é feita de pessoas que falham. Sim, todas as instituições são passíveis de falhas, porque feitas por pessoas. Mas é incompreensível que depois de tanta teologia, de tanta ciência, a formação teológica tenha se degenerado tanto, a compaixão e o acolhimento que se espera não apareça, o moralismo tenha se instalado, o misticismo tenha feito estragos, o discurso barato tenha ganhado corpo com o desprezo à teologia.  Sentia e sinto que faltava/falta o sonho de Jesus. Mas que sonho é este?

Em vários momentos fiz alguma mea culpa, reconhecendo a importância de muitas lideranças católicas na minha formação. Especialmente aquelas com as quais eu mais conflitava e, diga-se de passagem, não apenas eu.

Nem só de críticas vive um velho professor. Eu também venho revivendo o passado. A morte recente de meu pai suscitou várias lembranças, situações de vida em que a tristeza penetrou nos ossos. Com a maturidade, vamos pegando as mágoas e ressentimentos e colocando em um saco plástico, como se fora um balão cheio de gás que esvai pelos dedos, foge pelo ar. Não se trata de perdoar ou de deixar de ver a responsabilidade, nossa e alheia, como se nada trouxesse de conhecimento e evolução moral. O Jesus em quem acredito também preferiu dizer ser necessário sacudir o pó da sandália quando o outro não vislumbra seu desatino em deixar de abrir a porta para o próprio convencimento de que precisa mudar. E quando fecha o coração para os outros, a possibilidade de uma vida boa, a boa nova, se perde como oportunidade, as vezes única.

De certa maneira mudamos todos e todas. Nem sempre para melhor. Mas o Natal ainda me sugere, como um momento que sempre gostei de vivenciar, que é possível que seja diferente, que a vida pessoal e coletiva tenha um sentido de fraternidade tão falado, mas pouco incorporado. E continuo todo ano montando minha pequena árvore e meu pequeno presépio, na expectativa de que ainda é possível. Tenho tentado ensinar isso para minha pequena filha. Desejo muito que este sonho de Jesus, se ela assim o experimentar, embale também a sua vida. No universo do simbólico estão dadas probabilidades de sentido.

Não desmereço as demais crenças religiosas. Creio que todas são fruto da cultura. Até mesmo o agnosticismo ou o ateísmo o são. Como historiador posso assegurar que aquilo que cada um experimenta na vida demarca seus próprios sentidos existenciais. A religiosidade é inerente à cultura, defendo. O velho Karl Marx apontou o cristianismo como “o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração”. Sim, estamos num mundo sem coração. Mas há possibilidades para acalentar na alma e na consciência o desejo de aprimoramento social, humano. Independente de esse aprimoramento acontecer por meio de uma crença religiosa ou não. Somos livres. O próprio sonho de Jesus que vislumbro, pode ser construído de muitas maneiras, até mesmo pelos agnósticos.

A mística (e não o misticismo vazio) me sugere isso. Esse sonho nos indica que há mazelas existenciais e sociais a superar. A pobreza, a fome, a ignorância, todas as formas de ódio, a precariedade da consciência política de uma grande parcela dos cidadãos e cidadãs, são apenas alguns sugestivos indicadores do que ainda temos pela frente.

Li por esses dias, numa biografia organizada por Nita Freire, que Paulo Freire disse algumas últimas palavras a ela antes de morrer. Em termos mais simples, o que ele queria, pediu a ela, é que a vida dele fosse preservada. Ele desejava viver. Infelizmente teve vários infartos naquela noite. Creio que este episódio é muito revelador para os mais velhos. Há uma plenitude, uma vida em abundância que a maioria de nós ainda deseja. Queremos viver. Mas de que maneira? Qual sentido atribuir a este viver? Não há receitas, cada um toma para si aquilo que é próprio de sua caminhada e vai desvelando os véus da consciência para (re)significar seu processo existencial. A cultura é que enseja significados e pertinências.

No Natal dos meus sonhos eu ainda estou lá com meus amigos no topo da torre da igreja, embalando o sino. Soando possibilidades, como aquelas apontadas pelas narrativas evangélicas que indicam um filho de Deus gente, que nasce e morre pobre, que anda ao lado de todos os grupos sociais preteridos em seu tempo: do/a analfabeto/a ao publicano, da prostituta aos/às doentes, das crianças aos/às inimigos/as, das pessoas pobres e de todos/as os/as desprezados/as, inclusive pelos líderes religiosos. E tenho certeza, como disse diversas vezes o Papa Francisco, Jesus também estaria com as pessoas cuja condição de gênero é denegada.

Enquanto alguém que foi atravessado pela tradição católica, sinto-me reconfortado ao perceber a singularidade das iniciativas do Papa Francisco, a maioria delas (com algumas exceções relativas a questões ainda mal resolvidas no plano moral e que ele como pessoa e a igreja enquanto cultura consolidada, não dão conta de superar) centradas neste sentido que tanto marcou a todos/as amigos/as mais próximos/as da minha geração. Ainda não me sinto totalmente confortável para dizer que encontro este sentido na prática religiosa católica oficial. Não sinto que o acolhimento chegou ao chão da igreja. Ainda há muitos preconceitos, muitas burocracias do sagrado que a mim parecem engessar o sonho de Jesus. Lampejos sim, porque nenhuma instituição é um bloco monolítico. Tenho entre meus pares, alguns colegas da época de seminário que comungam em grande parte das mesmas impressões, a despeito da avalanche conservadora que se desencadeou nas últimas décadas.

Penso que há sementes sendo plantadas e que brotarão em breve. Não sem aqueles próprios sentidos que são apontados na parábola do semeador: há espinhos, pedras e muito solo inóspito para superar até que a boa terra seja encontrada. Da minha parte, observando meus sentimentos atuais, minhas ansiedades, as contradições da vida e os desejos mais profundos, penso que haverá de vingar, no solo da esperança, uma sociedade melhor, em que todos/as possamos ser também pessoas melhores. O menino da manjedoura, que nasce e que espelha simplicidade e amor, está a nos interpelar. Quem sabe, para a experiência dos que o admiram como um farol cultural e espiritual, indicando um sonho bom para se viver. Mais nascimentos e menos mortes. Mais alegrias e menos sofrimentos. Mais esperanças e menos medos. Mais desejos e menos ansiedades paralisantes. Mais luta e menos resignação. Mais justiça e menos infortúnios sociais. Mais direitos e proteção e menos abandonos. Feliz Natal!

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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5 Comentários

  1. Lindas reflexões👏👏👏

  2. Edilson José Graciolli

    Textos desse grande amigo sempre inspiradores e verdadeiros.

  3. Linda reflexão, Polli!

  4. Bjão querido primo!

  5. Bela reflexão, Professor!
    Obrigado por compartilhar conosco.

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