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O CORAÇÃO DO BRASIL

Lendas de raças, cidades perdidas nas selvas
No coração do Brasil
Contam os índios de deuses que descem do espaço
No coração do Brasil

(Marcus Viana)

Não é por ironia que o tema de abertura da novela revele elementos de reflexão que nos ajudam a pensar o significado de eventos históricos muito mal-esclarecidos. O papel dos historiadores é sempre o de lembrar o que se tenta fazer esquecer.

Estive em Portugal em três ocasiões. Numa delas, mais longa, tive a oportunidade de visitar a Igreja de Nossa Senhora da Lapa, onde se encontra o coração de Dom Pedro I (Dom Pedro IV, em Portugal). Na minha primeira viagem, rápida, já fiquei impressionado com o grande monumento no centro da cidade do Porto, enorme, dedicado à figura deste personagem tão valorizado na história dos dois países. Mas foi durante um período mais longo, quando morei por alguns meses naquela cidade, num bairro relativamente próximo da igreja, que algo estranho me aconteceu.

A igreja estava fechada, mas há um cemitério da irmandade que cuida daquele espaço, logo atrás do espaço religioso. Qual não foi minha surpresa, para não dizer grande espanto e temor, quando percebi algo inusitado. Já havia ouvido falar sobre este costume, mas estar cara a cara com a situação é indescritível, A maioria dos túmulos são na verdade mausoléus, capelas cujas portas, a maioria delas, são feitas de metal como se fossem esquadrias de uma janela, contendo os vidros transparentes que proporcionam olhar lá dentro. E vi aqueles caixões de defunto expostos. Tomei um susto, achei mórbido demais, um costume estranho. Cheguei a perguntar para um trabalhador do cemitério, mas ele não soube me explicar o motivo daquilo. Só meses depois, quando fui a outro cemitério em Lisboa, um outro trabalhador cabo-verdiano, que ali trabalhava fazia mais de 40 anos, pode me dizer com calma como aquilo funcionava. Continuei espantado. Até mesmo percebi em uma capela, o caixão exposto de uma moça morta no atentado terrorista a Paris, no Bataclan. Um caixão branco e uma foto.

Voltando à igreja da Lapa, sabia que lá estava guardado o coração de Dom Pedro, segundo o desejo dele próprio. Mas a sete chaves, exposto só ocasionalmente. Visitei a igreja, mas evidentemente nada de ver o tal coração.

E de morbidez em morbidez se vive nesta vida, aos trancos e barrancos. Bem ao modo como vive o Brasil nos últimos quatro anos. Há uma sincronia fina entre esta morbidez celebrada e a morbidez na qual foi mergulhada nosso país. Esse clima de necrofilia, a celebração coletiva da morte, na negligência entusiasmada contra a ciência, o patrocínio de 670 mil mortes pela Covid, o desprezo pelas minorias, nenhum sentido de apreço aos Direitos Humanos Fundamentais, vão compondo este quadro de desesperança, de morte da alegria, de enaltecimento da violência, de instabilidade na paz e de dessintonia na civilidade.

E a nossa história nunca foi feita dos seus verdadeiros corações, como expressa o trecho da canção de abertura da novela. Ficaram à margem do discurso histórico oficial, de nossa memória fundamental, as culturas dizimadas pelo invasor europeu. Ficaram marginalizadas as riquezas das experiências culturais dos povos africanos que deveriam nos encher de orgulho, pela vitalidade da coragem na resistência diante do sofrimento.

Esquecimento é palavra-chave quando se fala em celebrar uma suposta independência, meramente jurídica, política, mas jamais econômica e cultural. Mantivemos a subserviência e ainda somos vítimas, interna e externamente, de um desprezo pelo que é mais rico e belo. Não à toa tantos brasileiros hoje sejam, conforme demonstram os números atualizados, provocados pela xenofobia no país que eu tanto amo como um país irmão. Certamente isso se deve ao avanço do conservadorismo mundo afora, porque praticamente todos e todas dos nossos irmãos e irmãs portugueses são – e não deixam esquecer – pelo espírito solidário e fraterno que a Revolução dos Cravos legou para a cultura lusitana nas últimas décadas. Apesar dos “Chegas” da vida, das viúvas de ditaduras, aqui e lá, a maioria de nós somos movidos pelo espírito ético-solidário que compõe a história do futuro emancipatório que tanto desejamos.

No coração do Brasil (e de Portugal), mesmo com a relativa importância histórica que figuras enaltecidas tiveram, está muito mais a resistência do povo nos movimentos dos Cravos contra baionetas, nas Conjurações Baianas, nas Inconfidências Mineiras, nas Revoluções Pernambucanas, na resistência dos Zumbis dos Palmares e dos Gangas Zumbas, nas divindades Tupinambás acolhedoras e integradas à natureza em Tupã.

Haveremos de enaltecer com mais enfase esses corações do Brasil. Esqueceremos os translados de um esqueleto putrefato em sesquicentenários – e que, diga-se de passagem, nem coube no próprio túmulo. Haveremos de esquecer corações em formol nos bicentenários regados a ufanismos militaristas cadavéricos, como o que rege a mentalidade política dos atuais mandatários do nosso país. Aliás, celebradores de torturas e torturadores, de ditaduras sangrentas, renegadores da vida em sua excelência. Nossos heróis são outros. Alguns morreram de overdose, deixando nossos inimigos chegarem ao poder, como dizia o poeta.

Quem sabe nossas lutas consagrem o descanso eterno para esses heróis de segunda importância e, enfim, fiquemos com o coração inundado pelas lendas que efetivamente permeiam o coração do Brasil. A vida pulsa, a morte é secundária. E fechemos as portas dos mausoléus, para esquecermos de vez esses caixões de defunto na paz de seu descanso. E corações em formol nos seus lugares devidos, lá na igreja da Lapa. 

 

Crédito da foto: Portal das Missões.

https://portaldasmissoes.com.br/site/view/id/1625/marcal-de-souza,-tupa-i.-o-deus-pequeno.htmlo:

 

 

 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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Um Comentário

  1. Márcia Scurciatto

    👏👏👏

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