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De Jesus a Casaldáliga, passando por Francisco

 Novembro de 1985. Eu era um jovem militante da Pastoral da Juventude da diocese de Jundiaí que acabara de sair da condição de seminarista. Desde 1976 participava do movimento de jovens católicos e a partir de 1983 fui alçado à condição de membro da coordenação diocesana da Pastoral da Juventude. A partir de 1982, com o contato com pessoas de diferentes lugares, leituras diferenciadas sobre formas de atuação pastoral, incluí-me num movimento de transformação temporária que se fazia perceber na diocese. Dom Roberto Pinarello de Almeida, então bispo diocesano, com todas as críticas que se possam fazer à sua visão monástica sobre a igreja, abriu espaço para outras possibilidades, sobretudo por duas atitudes que na ocasião foram significativas. A primeira foi a de ser um dos primeiros bispos do Brasil a acolher o diaconato permanente. A outra foi de imprimir uma marca à pastoral diocesana, ao menos temporária, a da chamada “pastoral orgânica”. Para isso nomeou um então diácono, Paulo André Labrosse, um irmão vicentino, para ser o coordenador geral da diocese.

Como seminarista, dois anos após a assembleia que criou oficialmente a Pastoral da Juventude, que até então tinha apenas a característica de movimento, fui escolhido como assessor. Não era bem uma função para um seminarista. Geralmente sacerdotes ou religiosos ocupavam este posto. Mas lá estava o jovenzinho sem experiência. Já havia devorado todas as leituras necessárias, documentos oficiais da igreja, os místicos, todas as obras “mais avançadas” que inspiravam e se inspiravam na Teologia da Libertação, como a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire.

Naquele ano aconteceu a VIII Assembleia das Igrejas do Regional SUL I da CNBB e eu fui destacado, juntamente com o Diácono Paulo André e o Coordenador Diocesano da Pastoral da Juventude, Wilson Caveden, para representar a diocese neste importante encontro, que discutiria os rumos da Pastoral da Juventude no Estado de São Paulo. Foi um deslumbramento total. Estar ali, num evento em que me encontrava com grandes líderes da igreja, sentando-me à mesa do almoço com eles, conversando em pé de igualdade, foi uma das maiores experiências de vida que tive. Dom Angélico Sândalo Bernardino, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Luís Demétrio Valentini, Dom Claudio Hummes, Dom Mauro Morelli, Dom Fernando Penteado e tantos outros, passavam pelos meus olhos como luzes referenciais.

As inspirações para o trabalho da Pastoral da Juventude vinham de todos os lados. Paulo André ainda não era padre, eu era um jovem ex-seminarista numa função, digamos, imprópria para a minha idade. Mas Dom Roberto acertou. Paulo André arejou a pastoral orgânica, abriu espaços para o debate de ideias, colocou meu amigo-irmão Edilson Graciolli no comando das pastorais sociais. Paulo fora meu professor no seminário, ministrando a disciplina de História da Salvação. A esta altura eu já estava apaixonado pela área de filosofia, já havia cursado um ano no seminário e havia decidido ser professor. Na despedida, uma conversa ríspida com Dom Roberto, pois declarei-me adepto da Teologia da Libertação. Dali em diante, minhas relações com a igreja oficial não seriam mais as mesmas.

Já cursando filosofia em Campinas, um dia sonhei acordado. Estava numa igreja no centro da cidade. Ali um bispo de um pouco mais de 1,50 metros de altura ministrava uma palestra. Fui ver. Era Dom Helder Pessoa Câmara. Durante a fase do seminário eu já havia assistido uma palestra de Leonardo Boff no Colégio Ave Maria. As ideias progressistas fervilhavam na cabeça. Aumentava a admiração por alguns dos bispos católicos que assumiam a causa evangélica mais elementar e original, inspirada no sonho de Jesus, alimentada pelo poverello de Assis. Dentre eles estava Pedro Casaldáliga.

 Aquele catalão franzino que usava duas mudas de roupas, um anel de tucum e nada mais. Naquela lendária entrevista no Programa Roda Viva dos anos 80 ele estava com  aquela jaquetinha de nylon de sempre, surrada pelo tempo. Fala mansa e poética, coragem quase inumana. Um homem do amor que enfrentou as dores do mundo com amor. Ajudava a consertar telhados. Balançava crianças indígenas no colo. Consolava com as palavras certas e estimulava à luta pela justiça. Casaldáliga foi um desses raros homens que a humanidade vê nascer e que penetrou no coração de muitas gentes. No meu, certamente. Eu tinha o privilégio de fazer parte de uma geração de jovens católicos que viveram a transição de uma igreja mistificadora para uma mística encarnada e transformadora. Nem todos acompanharam.

João Paulo II faria estragos posteriores. Em Jundiaí, um bispo de feição reacionária provocaria perdas irreparáveis para a igreja, incomodando até mesmo seu antecessor. Mas no coração da gente ninguém mexe. Aconteça o que acontecer, as marcas indeléveis do amor em nós não se destroem. Ameacem-nos, atentem contra a nossa vida, nossa reputação, nossa dignidade. Nada muda.

Foi assim que o poeta-profeta viveu. Era um homem para além de seu tempo, um tempo sonhado de lugares fraternos, de justiça e igualdade. Um tempo em que a maldade não campeie, como agora campeia. Um tempo de libertação em dimensões várias: econômicas, sociais, políticas, culturais, educacionais, espirituais. Um tempo em que os medos são arrefecidos pela coragem de enfrentá-los com amor.  

Tenho caminhado pelas sendas de uma educação humanizadora, inspirado por mestres antigos, parceiros de toda hora. O que mais me comove neste momento é lembrar que o lema episcopal de Dom Pedro Casaldáliga era Humanizar La Humanidad. O que um simples mortal como eu poderia pensar desta coincidente esperança?

Era um homem do perdão, dos Direitos Humanos, da crítica sem reparos aos partidos de direita e de esquerda que atuaram pifiamente na defesa dos povos indígenas. Alguns até mesmo os colocando em risco. Ameaças de morte, atentados à bala, perseguições e ameaças de expulsão do Brasil, perseguições na própria igreja, no pontificado de João Paulo II.

Hoje, mais sereno, vejo que a igreja não é um bloco homogêneo. Apesar de todas as suas contradições, há algo em nós que fica pela história pessoal. Certamente extirpamos o que não nos parece bom. Preferimos a distância do que é oficial, opção reafirmada diversas vezes entre 1985 e 2016. Motivos não faltaram.

Mas certamente não faltaram também inspirações amorosas, capacidade de acolhimento e compreensão, consciência evangélica sem militância, rigorosidade acadêmico-científica sem basismo fundamentalista. E não seria por outros meios, senão pelos exemplos de homens como Casaldáliga que nos manteríamos no front. Circunstâncias podem mudar, situações específicas podem mudar, mas a consciência do que nos move no mundo não. Há muitas pessoas que viveram próximas deste poeta-profeta, puderam testemunhar seu exemplo e até mesmo viver da mesma forma que ele. Na minha modéstia, só restou acompanhar de longe, como tantos corações que se aproximavam do dele e que agora lamentam sua passagem deste mundo. Pequenos demais, nessa distância em que vivemos.

Como não lembrar e terminar este breve depoimento, regado pelo meu narcisicmo e falta de humildade, sem a maravilha escrita por Santo Agostinho sobre a condição da morte? Com estes versos rendo minhas homenagens a este homem que tanto significou para a sociedade brasileira, para os sofredores e desvalidos de toda ordem, para os esfarrapados do mundo, para os sem-terra, sem pão, sem direitos.  Mas cheios, muito cheios de amor. Pedrinho, como gostava de ser chamado, viveu os sonhos de Jesus, recuperados por Francisco, reafirmados em sua vida de amor ao próximo.

A morte não é nada

“A morte não é nada.
Eu somente passei
para o outro lado do Caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês,
eu continuarei sendo.

Me deem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.

Vocês continuam vivendo
no mundo das criaturas,
eu estou vivendo
no mundo do Criador.

Não utilizem um tom solene
ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que meu nome seja pronunciado
como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.

A vida significa tudo
o que ela sempre significou,
o fio não foi cortado.
Porque eu estaria fora
de seus pensamentos,
agora que estou apenas fora
de suas vistas?

Eu não estou longe,
apenas estou
do outro lado do Caminho…

Você que aí ficou, siga em frente,
a vida continua, linda e bela
como sempre foi.”

Santo Agostinho

 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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Um Comentário

  1. Vanderlei Victorino

    Que lindo e emocionante depoimento. A busca por um Terra Sem Males e verdadeiramente Humana, continuará pela coragem de muitos que lutam o dia a dia o bom combate. #VivaOBispoDaEsperança.

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