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UMA OUTRA HISTÓRIA

O que importa se são 365 ou 366 anos de fundação? O que importa definir quem foi o fundador da cidade? Durante décadas foi essa a preocupação de dois grupos de memorialistas em Jundiaí. De um lado, a construção de uma versão elaborada pelo Padre António Tolói Stafuzza, Mário Mazzuia e pessoas mais afeitas a desconfianças. De outro, o ex-prefeito Alceu de Toledo Pontes, Nelson Foot e outros dedicados debatedores sobre as fontes documentais que dariam crédito a uma ou outra versão sobre quem fundou a cidade e quando fundou.

Embora devamos considerar as suas contribuições, há uma marca constante que permanece até hoje na cultura sobre o que é a história e o que deve ser preservado. A memória histórica, nesta compreensão, dá mais valor a datas, pessoas, eventos, espaços físicos ou experiências culturais não relacionadas à complexidade do fazer social. O que nos falta é, nas políticas de preservação, que avançaram nos últimos anos, espaço para o financiamento e formação de grupos de estudos e pesquisas que discutam a história local numa perspectiva crítica. Nossos memorialistas do passado não tiveram condições pessoais e nem apoio científico – exceto em alguns momentos – para compreender que há diferentes teorias da história e que a história é sempre uma interpretação demarcada ideologicamente.

Como ciência crítica, ela é além de um mero estudo sobre o passado, uma tentativa de analisar e pensar os problemas do presente. Suas investidas em direção ao passado não são para compreender o presente, mas para interpretar o que outrora ocorreu. O passado não chega até nós já dado. Ele é fruto das condições históricas nas quais os intérpretes se fazem intérpretes. E infelizmente não houve avanços na capacidade de interpretação do nosso passado, nem de pensar soluções mais efetivas para o presente.

Há diferentes teorias da história, algumas de verve culturalista, outras de feição social e outras ainda relacionadas à micro-história. Todas possuem importância no desdobrar dos elementos de compreensão do que é o fazer histórico.

Talvez seja isso que nos falte como cidade, como política de preservação, mesmo com os esforços que foram realizados em recentes iniciativas. Fazer história não é catalogar documentos, colecionar a veracidade dos fatos, determinar a precisão temporal de um evento com achados documentais – mesmo que exista aí um valor. Fazer história é interpretar os modos de vida, as forças sociais em conflito, as dinâmicas econômicas, sociais e culturais coletivas e de grupos. Não há história crítica se o debate se restringe à preservação do patrimônio material (ou imaterial), à delimitação de uma cronologia, uma descrição de fatos e eventos, como sempre foi o mote da ciência positivista.

Fazer história é promover os sujeitos dela alijados, como negros, indígenas, trabalhadores, minorias de toda sorte. É colocar o dedo na ferida de que não somos fruto do que os barões, italianos, prefeitos, lideranças de toda ordem fizeram no decorrer de seu exercício temporal de poder e de hegemonia cultural. Há lacunas enormes, que nos remetem à pobreza explícita dos bairros afastados, à violência crescente em nosso entorno, ao racismo estrutural encalacrado em nossas práticas, às políticas nada humanizadoras de cultura e educação, aos enredos “modernizantes” conservadores do ponto de vista da visão do todo social. Estamos longe de ser uma cidade socialmente sustentável, culturalmente sustentável, ambientalmente sustentável.

Estamos longe de ser uma cidade acolhedora e humanizadora. Estamos longe de uma suposta qualidade de vida – restrita à percepção do olhar em parques e asfaltos – melhor aproveitáveis no centro da cidade. Estamos longe desta qualidade quando o interesse imobiliário mata a paisagem, destrói pedaços do ambiente antes povoados por pássaros e pequenos animais.

Como se vê, há muito mais motivos para estudar a história local, para além de comemorar a temporalidade da existência da cidade. Aliás, algo bastante discutível num prisma mais planetário, já que a cidade – territorialmente considerando – sempre existiu. A questão é a quem ela pertenceu, pertence e pertencerá. Mas esta é uma outra história.

Ilustração: Jean-Baptiste Debret

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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Um Comentário

  1. EDILSON JOSE GRACIOLLI

    Boa reflexão. Da memória ao meio ambiente, Jundiaí nos deve muito em termos de preservação. Filtra-se o mosquito e engole-se o boi…

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