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Os imbecis e o ensino de filosofia

Nos tempos em que eu era articulista do Jornal de Jundiaí, escrevi um artigo que, provindo de minha experiência como professor de filosofia, abordava um capítulo de um livro importante, que eu utilizava em minhas aulas. Da experiência em sala de aula surgiu o artigo, que reedito em partes, agora. Na ocasião, muitos não comprenderam o significado, considerando que se tratava de uma mensagem ofensiva, como se o termo utilizado, fosse um mero xingamento. Mas como toda palavra envolve um conceito, vamos explicar novamente. Na verdade, trata-se de um retorno aos clássicos da filosofia, que caso os mais desavisados não saibam, constituem-se a base do pensamento ocidental, esse mesmo que querem dizer que não serve para mais nada.

Hoje nos deparamos com a notícia da intenção de reduzir investimentos nas graduações em filosofia das universidades federais e até mesmo  fechar cursos, se é que juridicamente um mandatário provisório tem esse poder legal. Os agentes públicos que anunciam, por meio de rede social, parecem realmente se encaixar perfeitamente no conceito que abordaremos a partir do texto mencionado.

O filósofo espanhol Fernando Savater é quem escreveu um saboroso livro sobre o tema da ética denominado Ética para meu filho. Nesse livro, que eu sempre utilizei, há um capítulo em que Savater diz que a única obrigação que temos na vida é a de não sermos imbecis.

Explica-nos que a palavra imbecil vem do latim, baculus, que significa bastão, bengala. O imbecil é aquele que, na verdade tem um comportamento titubeante, apoiando-se em algo para ser reconhecido. Titubeia no pensamento e no espírito, por isso tem sempre um báculo para se sustentar. Savater enuncia vários tipos de imbecis, mas creio que podemos, fugindo dos exemplos que o autor nos oferece, também analisar alguns casos típicos com os quais nos deparamos frequentemente.

O imbecil adesista, tipo comum hoje em dia, é aquele sujeito que se coloca numa posição de subserviência a qualquer padrão, ideologia, esquema, seita política ou religiosa. Sua fraqueza subjetiva o impele à infeliz condição de serviçal de causas que não entende muito bem porque lhe falta a crítica. Cumpre sempre ordens cegamente porque não possui autonomia. Um exemplo clássico é o de Adolf Eichmann, criminoso de guerra nazista, que fazia o que lhe mandavam e foi responsável direto pelo morte de milhões de pessoas nos campos de concentração. É um pobre infeliz, que por não pensar, acha que tudo à sua volta “está normal” e não se implica nas barbaridades que ajuda a patrocinar. Os processos eleitorais que nos digam.

Um dos tipos mais vistosos é o imbecil pseudocrítico, que fala de Deus com ar de quem “sabe das coisas”, mas sua descompostura em desancar os outros revela sua real condição, a de alguém que não suporta viver contrariedades. Não entende o fluxo da história e o processo dialético, que insere a todos, em posições diferentes, num embate permanente de posições. É um sujeito asqueroso, que detesta a democracia, sustentador de preconceitos e arbitrariedades, amante do autoritarismo. As vezes chega a ocupar altos cargos na estrutura de poder.

Dos tipos mais atuais podemos destacar o imbecil frouxo, aquele que abre mão de princípios facilmente (para não parecer principista ou purista, é claro, nem de esquerda ou direita), andando ao léu das “conjunturas” e “realidades concretas”. É o político do “diálogo”, que quer ficar bem com todo mundo. Trata-se de um tipo sedutor, que convence pela fala supostamente audaciosa diante dos “poderosos”.

Há também um certo imbecil que gosta de fazer tipo com a violência, acha que o papel do “homem”, daquele que “manda” é sempre controlar a vida das pessoas com intimidações de todos os tipos. Gosta da violência simbólica, do sarcasmo, da ironia e do deboche, desprezando e fazendo aos que estão sob o seu domínio, reconhecerem seu “lugar na sociedade”: mulheres, negros, trabalhadores, homossexuais, pobres.

O que dizer do imbecil abastado? Esse é um tipo de imbecil que fia suas ações na sua referência de classe. Gosta de esbanjar e “curtir a vida numa boa”, mesmo que para isso seja necessário matar cachorros na rua, tacar fogo em mendigo, ou coisa dessa natureza. Esse é um verdadeiro porre, porque além de sua arrogância de classe, possui uma ignorância ética que o desqualifica para qualquer convivência saudável. Mas está sempre na onda, faz eco entre movimentos do submundo, como parceiro de atos duvidosos.

Mas o que seria do mundo se só os imbecis garantissem espaço? Certamente não se pode generalizar. Há também vida saudável nesse entorno tão imbecilizado. Há os que gostam de pensar o mundo de forma a transformá-lo, os que pensam as relações com os outros de maneira mais afetiva, cordial e respeitosa, sem arrogâncias ou centralismos. Pessoas simples, mas que ainda se esforçam por manter princípios, coerência, simpatia, generosidade. Eles sabem que os imbecis são como “mortos que enterram seus mortos”, por isso se afastam deles. Os que não são imbecis continuam a viver, ou pelo menos tentar viver, uma vida boa.

Não serão decretos ou artimanhas ideológicas de quem quer que seja que diminuirão a sensibilidade ética e mesmo a inteligência dos que não são imbecis. O lugar do poder nas democracias é o vazio, como já preconizava Claude Lefort. Os imbecis que estão no poder logo vão sumir. Eles passam. O que resta além deles são os sonhos, a decência, a vida ética e a inteligência, que decreto algum consegue apagar. Duvido que as instituições escolares democráticas deixarão passar esse absurdo. A filosofia, mesmo com idas e vindas, continuará sendo a guardiã de lugar do conhecimento, como afirmou Habermas. O resto é idiotice.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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