Home / Educação / Paulo Freire: de portugueses para brasileiros

Paulo Freire: de portugueses para brasileiros

Era final da década de 70 e eu tinha apenas 18 anos. Um jovem militante da Pastoral da Juventude que cursava o Ensino Médio. A atuação na igreja progressista me obrigava a ler muitas obras de referência. E lá estava ela, a Pedagogia do Oprimido, a instigar minha mente voraz de filho de operários, que se deixava embalar pelo sonho de Jesus, seu sentido de justiça e amor à humanidade, associando-o aos referenciais teóricos de cristãos como Paulo Freire. Antes mesmo de ingressar na universidade, a Pedagogia do Oprimido já havia “me contaminado” com uma visão de mundo libertadora.

As resistências dentro da igreja eram enormes. Movimentos mais ajustados e melosos faziam ouvidos moucos ao discurso libertador, especialmente numa cidade em cuja trajetória clerical (não propriamente eclesial) estava presente o viés conservador.

Já professor, envolvi-me na luta sindical. Mas percebia falta de leitura nos colegas de luta. Após ter feito a licenciatura em Filosofia e iniciado um mestrado em Ética, mudei de área. No mestrado em História Social, realizado na PUC de São Paulo, encontrei o velhinho várias vezes pelo corredor, já que ele lecionava no programa de pós-graduação em educação. Não tive o prazer de conhecê-lo mais de perto. Eu continuava inquieto. Já havia iniciado minha carreira como professor universitário em 1996, com o título de mestre debaixo do braço. A inquietação me levava a pender para a área da pedagogia. Licenciei-me nesta nova área, sem saber que grandes mudanças aconteceriam, motivadas em grande medida pela minha experiência anterior com as leituras sobre Paulo Freire.

O ingresso como professor na Cooperativa Educacional de Jundiaí – Colégio Paulo Freire, fez-me cursar uma escola prática em Paulo Freire, quando lutar pelas ideias dele dentro de uma escola que levava seu nome era algo inusitado. Havia resistências, mesmo ali. Infelizmente não participei daquele evento em que Paulo foi prestigiar a escola, que escolheu seu nome como patrono. Mas ali me encontrei com outros de seus afetos próximos: Nita Freire, César Nunes (que já havia sido meu professor na graduação) e tantos outros. Como decorrência de minha presença naquela comunidade surgiu o projeto para o doutorado em 1999. A inspiração veio pelas aulas de Pedro Goergen, um habermasiano que tinha sido diretor da Faculdade de Educação da Unicamp.

Percebi uma grande possibilidade de aproximação entre a Teoria do Agir Comunicativo e a Teoria da Ação Dialógica, entre a Ética do Discurso e a Ética Universal do Ser Humano. A Unicamp era um sonho. Aprovado na prova escrita, qual não foi a decepção em ver a banca rejeitar Paulo Freire naquela universidade. A rejeição não tinha relação com a qualidade de meu projeto, mas como uma história anterior de rejeição a Paulo Freire na Unicamp. Ingressei na USP, para minha sorte, com a orientação de um dos maiores nomes da filosofia e da educação do Brasil: Antonio Joaquim Severino.

Minha surpresa foi perceber que, em vários temas específicos, diferentes do meu (a ética), já havia muitos trabalhos aproximando Paulo Freire e Habermas. Defendi a tese em 2006 e de lá para cá venho aprofundando meus estudos sobre a relação entre esses dois autores. Mas outro inusitado veio a tomar-me de assalto.

Jundiaí nunca tinha passado pela experiência de um governo à esquerda. Pela minha militância neste campo, no movimento sindical e na vida acadêmica e por ter apoiado o candidato que venceu a eleição, um amigo de longa data, fui convidado a participar do governo. Dois anos de trabalho como assessor pedagógico. Logo depois, o convite para assumir a secretaria da educação como secretário. Já havíamos consolidado algumas bases para mudanças significativas no discurso e na prática educativa na rede municipal de ensino. Uma rede com 30 mil alunos e 2 mil professores, além de outros quase 2 mil servidores de apoio administrativo e pedagógico. Não sem muita surpresa vieram as resistências. Aplicar pressupostos freireanos aliados a outros discursos progressistas não é tão fácil como parece. Mas foram anos de batalhas vencidas, ao menos em parte, já que as marcas foram registradas na história.

Perder uma reeleição é dolorido. Especialmente quando tudo poderia levar a um aprimoramento do trabalho popular, democrático e participativo. Mas no Brasil as coisas não tem funcionado assim, tão facilmente. Agora era fechar o ciclo da carreira, com uma aposentadoria batendo à porta, em meio a direitos ameaçados. Outro inusitado me esperava.

Aposentado, após 36 anos de trabalho, pude realizar um sonho do passado. Ingressar na Unicamp, agora pela porta da frente, com uma tese sobre Paulo Freire publicada em duas edições. Ingressei no programa de pós-doutorado e a parceria com meu supervisor, professor César Nunes, um ex-aluno e secretário pessoal de Paulo Freire, arejaria meu coração, renovado em espírito e confiança, para poder falar mais sobre a Pedagogia da Libertação, agora como uma teoria da emancipação. E entre planos e atividades, planejamos uma vinda a Portugal, onde vislumbramos uma possibilidade de ampliação de horizontes de pesquisa, para identificar pessoas e experiências que comprovam aquilo que muitos teimam em negar, por desconhecimento e má-fé, aí no Brasil: Paulo Freire faz a diferença.

Encontrei um país evoluído em muitos aspectos. Em outros nem tanto. Problemas sociais existem em todos os lugares. E Portugal é um dos países mais desiguais da Europa. Mas a riqueza cultural é imensa. 15 universidades públicas de excelência. Um sistema público de educação, que mesmo com as contradições que são inerentes a toda gestão educacional, se esforça por avançar no discurso e na prática educacional, especialmente agora que o governo propõe paradigmas metodológicos, de avaliação e funcionamento do sistema que aparentemente o humanizam e o fazem entrar em uma nova fase: superar o discurso centrado apenas nas metodologias, algo que percebi muito forte por aqui.

Mas minha tarefa era outra. Identificar nomes estudiosos de Paulo Freire ou que sustentam seu trabalho a partir de pressupostos freireanos e experiências práticas de aplicação destes pressupostos ao longo da história recente de Portugal. Consegui identificar inicialmente ao menos 3 nomes importantes na Universidade do Porto, além de grupos de pesquisa e do próprio Instituto Paulo Freire de Portugal. Em Coimbra, dois nomes em especial me permitiram perceber diferenças de uma região para a outra. Em Lisboa, dois outros nomes.

O Instituto Paulo Freire de Portugal, comandado pela professora Luiza Cortesão, está muito bem articulado à Universidade do Porto e outros pesquisadores de outras universidades. O Centro de Recursos Paulo Freire propõe-se a apoiar com assessorias e material apropriado, iniciativas em educação inspiradas em Paulo Freire. A Professora integra o Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Universidade, que juntamente com o Instituto de demais grupos de pesquisa, promove diversas atividades de formação, como as Tertúlias Dialógicas, que envolvem pesquisadores de mestrado e doutorado da faculdade. Outra iniciativa é a realização do ciclo de conferências sobre Políticas Educativas, Literacia e Diversidade. A última delas, foi ministrada pelo professor Alberto Melo, com o título “Recortes de uma vida de intervenção inspirada em Paulo Freire”. Melo é um dos maiores nomes da Educação de Adultos de Portugal, tendo sido professor em universidades na França e na Inglaterra. Foi diretor geral de Educação de Adultos nos anos pós revolução e até hoje inspira trabalhos nesta área. Também trabalhou na Unesco e foi consultor de Portugal na OCDE – Organização para a cooperação e desenvolvimento econômico. O professor Melo hoje faz parte da APCEP – Associação Portuguesa para a Cultura e Educação Permanente.

Em Coimbra encontramos o professor Luis Alcoforado, que trabalha com Educação de Adultos na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. Ele é autor de vários trabalhos, dentre eles alguns que se referem à experiência prática do GRAAL, um movimento de inspiração cristã de mulheres comprometidas com causas sociais. Em Coimbra o GRAAL desenvolveu um projeto de alfabetização de mulheres camponesas, no limiar da Revolução dos Cravos, inspirado na proposta de alfabetização de Paulo Freire. Também é marcante o nome do sociólogo Boaventura Sousa Santos, que realizou seu doutorado no Brasil na década de 70, num trabalho de pesquisa junto à comunidade de Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Em seus últimos livros, tem defendido os referenciais das epistemologias do Sul, dentre elas a Pedagogia Libertadora de Paulo Freire.

Em Lisboa, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, encontramos o professor António Teodoro, catedrático e diretor do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento. Fez parte do Conselho Nacional de Educação e foi fundador do Instituto Paulo Freire em Portugal. Pesquisa em várias frentes de trabalho com acento em perspectivas progressistas em educação. Muitos de seus trabalhos estão relacionados à teoria freireana.

Além destes nomes, não posso deixar de mencionar o Professor Rui Trindade, da Universidade do Porto, um dos membros do grupo que organizou o projeto inicial da Escola da Ponte e hoje secretário de Estado na área de educação, que tem me orientado nesta minha pesquisa em Portugal. Também a professora Ariana Cosme, que percorre o país defendendo causas humanizadoras na educação, discutindo currículo e prática educacional sob a inspiração do MEM – Movimento da Escola Moderna, que tem como seu grande mentor o educador Sérgio Niza, um dos maiores nomes da educação portuguesa.

Aqui estou para aprender e levar Paulo Freire de volta para o Brasil, num momento em que parte dos brasileiros ressaltam sua ignorância sobre a importância deste grande educador. São os portugueses a nos dar exemplo, por isso busco nestes nomes e experiências, elementos teóricos e práticos para ressaltar o óbvio, infelizmente não tão óbvio para muitos.

 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

Check Also

PAULO FREIRE EM VIDA

Michael Apple já alertava em uma obra organizada conjuntamente com António Nóvoa (Paulo Freire: política …

2 Comentários

  1. Edilaine Maria Cassolatti

    Muito bom Renato!!! Não desista do seu intento.

  2. Obrigada Renato por socializar conosco sua trajetória e reflexões sobre seus aprendizados e movimentos de valorização dos conhecimentos prodizidos por Paulo Freire nosso grande mestre.

Deixe uma resposta