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Naquele fusquinha

27 de abril de 2019. São 19h45 na cidade do Porto. Da janela do quarto ouço o canto maravilhoso de um pássaro enquanto aprecio o sol do horário de verão, ainda límpido, suave e terno, que vai se pondo devagar. Observo ao longe o pináculo da Igreja de Nossa Senhora da Conceição.

Depois de quase dez dias de chuva intensa, muito frio e recolhimento, quando me coloquei a estudar em meu quarto, enfim, hoje foi um dia quente. Amanheceu com a luz clara e forte, propícia para que eu me animasse a fazer o que mais me apraz nestas paragens: caminhar e pensar na vida. Mas uma notícia ofuscaria meu entusiasmo.

Início do ano letivo de 1973. Começo uma nova jornada em minha vida escolar, agora na fase do ginásio. Tudo muito novo. Antes uma única professora, agora cada disciplina com um mestre. Estou no antigo Ginásio Estadual Professor Adoniro Ladeira, na Vila Rio Branco, o bairro onde fui criado e que amo de coração. Que sorte a minha, porque entre meus professores e professoras estão verdadeiras lendas vivas do magistério jundiaiense. Élvio Santiago, Fernanda Milani, Ariovaldo Zaniratto e tantos outros.

Um rapaz jovem, de cabelinho chanel, estatura baixa e de humor sempre irônico, cuida da área de ciências. A sua folha de papel era um velho e surrado quadro negro, onde ele desenhava com brilhantismo seus textos e ilustrações. Livros didáticos eram controlados, naqueles tempos de cuidados com os desejos democráticos. Foram quatro anos aprendendo anatomia, saúde, zoologia, geologia, questões ambientais de diversas naturezas com aquele empolgante professor. Ele cativava e fazia com que o interesse despertasse. Eu e vários outros e outras colegas nos apaixonamos pela geologia. Começamos a colecionar geodos, quartzos, turmalinas, ametistas, topázios, fósseis. Lembro-me de uma caixinha de madeira que eu guardava com muito carinho, onde ficavam as minhas peças.

Explorávamos os morros da região. No famoso morro da Cica, onde hoje está o Maxi Shopping, descobrimos um veio de turmalinas. Que achado! Mostramos para o professor, que confirmou nossa conquista. Na ocasião, ele tinha um fusquinha, verdadeiro coração de mãe, que levava todo mundo pra cima e pra baixo. Eu mesmo fui até a casa de sua mãe, em Campinas. Excursões para sítios geológicos em Rio Claro eram organizadas e tudo fluía como deve ser, uma educação vinculada à vida, cheia de conhecimento e significados, alguns deles mágicos e inspiradores. No final dos anos 70 ingressei no antigo Colégio Técnico de Jundiaí, escola que também faria parte de sua carreira. Mas ali não nos encontramos.

A vida é mesmo engraçada. Em meio a tantos percalços pessoais, idas e vindas, dificuldades no trabalho e nos estudos, enfim, tornei-me também professor. No final dos anos 90 e início da década de 2000, encontrei novamente meu professor. Agora ele era meu colega na direção do Sindicato dos Professores das Escolas Particulares de Jundiaí. Foi um período curto, mas a reaproximação me causou muita emoção. Ele e vários outros mestres da época de ginásio agora eram meus colegas de trabalho.

O que mais me encantava nestes mestres era seu amor pelo conhecimento. A despeito de metodologias, concepções de educação e contexto histórico havia uma amálgama de situações existenciais, sentimentos e desejos, neles e em nós, que fazia tudo fluir, quase que sem problemas. O rigorismo dos controles arbitrários, sobretudo nos processos de avaliação, vinham a povoar a cabeça de todos, numa relação que variava entre o medo e o arbítrio. Mas não havia o que suplantasse o respeito por aqueles mestres.

Eis algo de que nunca vou ter que me arrepender. Sempre fiz questão de anunciar publicamente meu respeito pelos meus professores e professoras, independentemente de suas convicções pessoais, opiniões, formas de ver o mundo. O fiz em muitas ocasiões por meio de artigos publicados na imprensa local, além de capítulos de livros. E o nome dele sempre esteve lá. A gratidão é um valor que nunca faltou em mim. Muitas vezes expressei diretamente a alguns deles.

Em meio a um turbulento processo de ataques ao conhecimento, sentir-se assim recompensado por ter sido aluno de um brilhante professor, que transbordava amor pela profissão, carinho pelas pessoas e uma inteligência elevadíssima em sua área do conhecimento, faz-me sentir esperança.

Hoje, depois de 30 anos de trabalho como professor, já tendo me aposentado, estou aqui na cidade do Porto, desenvolvendo uma pesquisa sobre o educador Paulo Freire na Universidade do Porto. Minha condição de pesquisador colaborador da Faculdade de Educação da Unicamp, sinto-a como uma conquista da minha geração, um legado dos meus professores e professoras. Não há como não me sentir devedor dessas figuras humanas, que amaram, viveram, criaram seus filhos, conviveram com seus netos e amigos até o fim, na busca do inefável e profundo significado da vida.

Como historiador, observador de registros históricos, nunca deixei de prestar atenção nas fotografias. Sérgio da Silva Zavan estava ali, de maneira franca e sincera, demonstrando sua felicidade com a família e nas mais variadas situações de vida.

O sol já quase se pôs. Vejo-o, aos poucos, ir embora, tendo ao fundo a Quinta do Covelo, um parque público e ecológico aqui perto de onde estou. Sob o canto dos pássaros parece que vejo a figura de um fusquinha cheio de amor subindo aos céus. No fundo do Parque há um Centro de Educação Ambiental.

Não é sem emoção que termino este texto, me lembrando que a minha caminhada de hoje, longa, de várias horas, que foi feita sob a mais profunda introspecção. Absorto em meus pensamentos fui observando cada pedaço da cidade. O rio, as plantas, os pássaros, as flores.

Divaguei em emoções e reflexões, pensando no como é rápida nossa caminhada por este mundo e que apenas nos cabe viver com amor e esperança. É isso que vi sempre à distância no Serginho, professor que marcou minha geração, da minha mulher, minhas cunhadas, muitos dos meus amigos, como professor dedicado que foi. Sua passagem pela rede estadual de ensino, pelo ETEVAV, pelo Colégio Divino Salvador, fez surgir uma legião de fãs, seus legados, que agora vão tocando em frente, para tentar ser metade do que ele foi.

O Sol já se pôs. O fusquinha cheio de amor já pegou outra estrada em direção ao cosmo.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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4 Comentários

  1. Que texto lindo , acho que seus professores e professoras tem muito orgulho de terem você como aluno .em especial o professor Serginho que deve estar muito feliz com essa bela homenagem.

  2. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

  3. 👏👏👏Parabéns!!! Linda homenagem!!! Este texto tem um significado especial prá mim, afinal também fui aluna do professor Sérgio. Perfeita expressão de gratidão aos professores, aqueles que nos ajudaram a encontrar nosso caminho, nossa vocação. Que sejam felizes, onde estiverem.

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