Fui com nosso carro levar minha filha para as vacinas previstas, na unidade básica de saúde do bairro, que fica cerca de 2 kilometros de nossa casa. Ao chegar, havia várias pessoas, dentre elas uma mãe com um bebê de poucos meses, lindo. Ele foi vacinado primeiro e a mãe saiu, depois veio a nossa Manuela. Ao chegar na avenida, vi que a moça estava no ponto de ônibus com a criança, num dia em que o vento frio estava perpassando nossos corpos. Fui tomado de uma sensação de tristeza profunda. Talvez pudesse ter ajudado, talvez pudesse ter feito alguma coisa e não fiz.
O fato de ter nascido numa família simples, não exatamente miserável, tenha proporcionado algumas singularidades no olhar sobre a vida. Meus pais foram operários e em alguns momentos a pobreza bateu à porta, sem, contudo, ter nos deixado totalmente à mingua. Isso aconteceu igualmente com vários amigos e amigas.
Também não sei dizer se este tempo de Natal as notícias me fizeram ficar com o peito assim, meio travado, com um nó profundo na garganta. Olhamos em volta e o que vemos? Moradores de rua espancados, desalojados com força física; mulheres sem emprego e sem ter o que dar de comer para seus filhos, que criam sozinhas; pessoas tentando encontrar no lixo algo que possam comer; desemprego galopante e inflação desmesurada. Racismo, homofobia e xenofobia a olhos vistos. Milhares de famílias tendo perdido seus entes queridos devido ao clima de morte instalado na esfera do poder central. Milhares de crianças perdendo pai, mãe, irmãos e esta saga negacionista continua.
Aos 8 anos de idade fiz a primeira comunhão, na paróquia que leva o nome de Santa Teresinha, referência que marcaria a cultura de toda a minha juventude e, logo depois, ali recebi o sacramento do Crisma. O pároco era uma pessoa de uma erudição vazia. Hábil na “ciência”, mas de convivência humana difícil. Havia um velho anfiteatro ao lado da igreja, onde evidentemente o fascínio pelo ambiente religioso atraia muitas crianças e adolescentes. Foi assim que após o Crisma eu passei a frequentar uma comunidade de “perseverança”, uma espécie de escola preparatória para o ingresso posterior numa comunidade de jovens.
Dentre as muitas incorporações, a aprendizagem do violão. Tocar violão na missa era um deleite. Uma música do famoso padre Zezinho propunha o espírito da fé entre os jovens. Um jovem galileu. E tomei por empréstimo uma parte do título para nomear este texto-depoimento. Certo dia, ao sairmos da missa, como de costume ficávamos alguns minutos na porta da igreja para depois irmos para o salão onde ocorriam as reuniões da comunidade de jovens. E eu vi, só eu vi, de longe, um senhor recolhendo um algo qualquer em uma lata de lixo. Lembrei-me firmemente do poema de Manoel Bandeira: “o bicho, meu Deus, era um homem”.
Jesus de Nazaré, um certo galileu, era apresentado no movimento de jovens como um “amigão”. E ele estava ali recolhendo lixo, mas não era tão amigo nosso assim. A vida de trabalho logo nos convocava para o enfrentamento da dura realidade da ditadura militar, em ambientes francamente autoritários, onde humilhar os menos experientes era prática comum. A vida escolar ia bem, até pelo menos um certo momento, quando a orientação pedagógica levava à poda, literalmente falando, os jovens com dificuldades em algumas áreas do conhecimento. Foi o meu caso. Duas reprovações no ginásio. Na sequência, mais uma no primeiro ano do colegial. Veio o desemprego e com ele a necessidade do alistamento militar. Novas humilhações, durante o processo de entrevistas, por um tenente um tanto insensível, se posso dizer educadamente.
Outras situações humilhantes acompanham a vida de um filho de operários, como o término de um namoro por diferenças de classe social. Era a dura vida de um jovem que se pretendia cristão, incorporado numa comunidade cristã, mas que por razões sociais, se via apartado da solidariedade efetiva, do amor sem manchas de preconceitos. Outros jovens, para o bem da verdade, viviam dificuldades maiores. Meus pais sempre lutaram para sobrepujar a pobreza inicial. Não sem as contradições psicossociais que a vida lhes proporcionou.
E segui na esteira da militância da juventude católica local. A liderança foi um passo. A mudança de ares teológicos se avizinhava, lá pelos idos de 1980. Até Paulo Freire aparecia como referência, mesmo sem muita compreensão do seu significado. Havia um enfrentamento local, na paróquia, que se deu no espírito de muito respeito, durante a convivência com outros dois párocos.
Rompimentos com ideias anteriores, situações de conflito com pessoas, ingresso no Seminário Diocesano. Uma visita a Roma, para ver bem de perto aquele que seria o responsável pela desarticulação da igreja popular. A decisão de sair do seminário meses depois. Alguns fatos nunca revelados. Saí sem falar com ninguém. Apenas com o bispo. Uma figura ao mesmo tempo carismática e amedrontadora. Um homem que passei a admirar na fase final de sua vida. Mas foi bastante ríspido comigo. O que eu disse a ele ficou selado em nossos corações para sempre e ninguém saberá. E segui meu caminho. Padre Paulo André Labrosse, no entanto, seria um divisor de águas na minha caminhada. Fui ao seu velório, muitos anos depois, porque ele era um mestre da minha visão de igreja e de cristianismo. Um homem que me influenciou para a militância política, que na prática já existia, sem nenhuma vinculação partidária, desde 1980. E tornei-me professor, uma curva na reta de um destino socialmente traçado pela condição de classe.
Depois de tantas idas e vindas, a vida profissional me levou, aos poucos, a “reeditar”, neste processo de amadurecimento, sentimentos mais elevados, como aqueles que ingenuamente embalavam minha juventude. Naquela época não tinha uma compressão mais larga dos motivos da desarmonia social. A Teologia da Libertação e as inúmeras leituras ajudaram muito. No atual momento, não sem ter vivido as agruras do desencantamento em várias ocasiões, proporcionadas por mortes de diversas naturezas, vai ressurgindo uma esperança e um sentimento apurado. Menos pretensões, mais subjetividade e sensibilidades várias, coisas do coração.
Tenho acompanhado, na área da educação, os estudos sobre a Paideia Cristã, desenvolvidos por vários amigos experientes. E a ideia forte é a de que devemos “ir e ensinar a todas as nações” e nelas, a todas as pessoas. Ninguém deve ser excluído do sonho de um certo Jesus de Nazaré. Há muitas versões, históricas e teológicas, sobre quem é esse homem. Algumas ressaltam com muita propriedade a sua condição humana exponencial. E talvez seja exatamente esta compreensão que serve como “guia” neste momento de tantas adversidades. Há um potencial humanizador que não deve escapar de nosso horizonte pessoal e coletivo. Esse Jesus e esse seu sonho continuam vivos em mim e em muitas pessoas. Mas ele não é o Jesus dos que o clamam nos fóruns da burocratização da fé, nem nos contextos moralizantes do conservadorismo. Ele é outra pessoa. É um Jesus da manjedoura simples, que nasce nas periferias em outros tipos de manjedouras. É o Jesus morador de rua, mãe desamparada, jovem que sofre a violência e o preconceito racial, o Jesus que morreu de covid nas filas dos hospitais esperando vaga nas UTIs.
Talvez sua condição humana, tão igual à nossa, mas superior numa ética do cuidado, revele que nossas contradições são parte da caminhada. Até nos esforçamos para ser melhores, mas certamente causamos sofrimentos a muitas pessoas, assim como delas fomos vítimas. A caminhada, no entanto, sempre comporta a possibilidade da correção dos rumos, de uma consciência relativa do que deveríamos ter feito e do que devemos fazer.
O Jesus no qual acredito não está preso às amarras institucionais. Ele nada tem que ver com questões de gênero, nunca escreveu cartas ou fez protestos por conta de uma ideologia que não existe. A ideologia de Jesus é o amor incondicional e a misericórdia. O Jesus no qual eu creio está mais preocupado com a injustiças, a desvinculação entre fé e poder, a vida prática celebrada em outros altares, outras liturgias, com outros vinhos. E eu fico satisfeito de ter tentado acreditar nas estruturas eclesiais, de me desapontar com elas, de tentar acreditar de novo, mas abdicar de pertencer ao que na prática já pertenço, a minha fé. É verdade que Jesus não condenava ninguém em especial, a não ser a raça de víboras, os fariseus hipócritas, os praticantes da religião que não conseguiam perceber a mensagem de amor e acolhimento.
Todo ano eu monto um presépio. Minha filha de um ano já o vê e já demonstro o seu significado para a pequenina. Foi batizada na igreja católica recentemente, porque o batismo é a entrada numa comunidade. Esta comunidade para mim é a que me motivou a procurar ser cristão. Não é a eclesiologia o centro dessa comunidade, mas o amor e a caridade com potencial transformador. É a igreja de todos, de todas e de todes. É a igreja dos pobres e sofredores, a universalidade do amor, da fraternidade em gestos, pequenos ou maiores, mas práticos.
O Jesus no qual acredito não é o Jesus deste natal capitalista, inventado como marca de um poder temporal romano. É um Jesus do natal real, esse das ruas. Felizmente, há muitos entre nós que, mais cristãos e efetivamente crentes no amor de Deus, estão nas frentes de trabalho nessas mesmas ruas, entre os miseráveis. Ali não há teologia, não há moralidade, não há liturgia fria. A liturgia é a própria ação de amor e acolhimento, de compaixão e solidariedade. A desigualdade não é percebida como questão moral, mas como fruto de uma sociedade de classes. Essa sociedade é que faz com que quem vem de baixo, às vezes, sinta na pele do outro o que já sentiu, como o friozinho que embalava os cabelos daquela mãe que foi vacinar seu bebê. Sinto os apelos e por vezes não os interpreto corretamente. Como naquele dia em que vi um homem remexendo o lixo.
Talvez o consolo seja o fato de que, como dizem as letras das canções: “Queria ser como os outros, e rir das desgraças da vida e fingir estar sempre bem…”, e : “As vezes o que eu vejo quase ninguém vê”. Muita gente vê, estamos irmanados, mas há muita gente que finge não ver ou realmente não vê.
Não me sinto privilegiado, apenas penso que fui atingido de alguma maneira por esse Jesus de Nazaré. Lamento, no entanto, que muitos da minha geração não vejam assim, ou que tenham mudado de posição, apoiando déspotas insanos, associando-se a destruidores do bem público, ajudando a flagelar esse povo sofrido “das vilas, favelas”.
Minha atuação como professor tem se caracterizado como um frágil esforço para me ver mais humano e perceber a humanidade nos outros. Talvez seja esta a minha contribuição e de muitos que estão ao meu redor hoje. Ajudar a pensar as agruras do presente, com fé na história e nesse Jesus de Nazaré possível, um homem além da conta.
Texto sensível e duro ao mesmo tempo, trajetória que o levou a esse pensamento humanista…