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O TRABALHO, A VIDA E A HUMANIZAÇÃO (Uma homenagem a Toshimitsu Harano)

 

A vida é mesmo curiosa. Por vezes só percebemos a importância das experiências passadas com o decorrer do tempo. São inúmeras. Elas se apresentam em nossa mente vagarosamente, como esfinges que propõem enigmas a decifrar. A oportunidade de interpretar estes enigmas é grande, quando há abertura de coração, sensibilidade e bom uso da razão.

Não conseguiríamos nos constituir como pessoas se não fossem as relações que construímos com outras pessoas. Algumas delas estão junto da gente a vida toda. Outras, passam durante um tempo e depois seguem seu caminho, sem que percebamos o quanto elas significaram para nós.

Vivemos a maior parte de nossa existência nos ambientes de trabalho. São muitas horas diárias, num vai e vem de situações e relações interpessoais que, de uma maneira ou de outra, vão dando forma ao que somos. Trabalhar, segundo a linda letra da canção de Gonzaguinha é imprescindível para nosso aprimoramento humano, já que ele, o trabalho, é a materialização dos sonhos e “sem o seu trabalho, um homem não tem honra, se morre, se mata”.

Minha família é constituída, em sua origem próxima, por trabalhadores simples, sem muita qualificação. Meu pai era filho de ferroviário e da mesma maneira que seu pai, também foi ferroviário. Minha mãe foi tecelã, filha de um carroceiro e entregador de pão. Durante grande parte de sua vida, meu pai trabalhou em atividade insalubre, o que o fez aposentar por invalidez, antes mesmo de completar 40 anos de idade. Não era fácil – e ainda não é – sobreviver com o salário da aposentadoria. As atividades informais de trabalho como pintor e pedreiro tiveram que ser uma alternativa de sobrevivência.

As leis trabalhistas, naqueles idos dos anos 70, permitiam o trabalho de crianças a partir dos 14 anos. Felizmente esta realidade mudou. Antes dos meus 14 anos de idade eu já ajudava meu pai, em tarefas menores nesses serviços informais. Em algumas situações especiais, principalmente por ocasião do natal, era comum que eu ajudasse em pequenos serviços, na loja do meu tio e padrinho Adão Spina. Ficava feliz em ser útil e ainda por cima ganhava um dinheirinho para comprar uma roupinha nova.

Nunca irei me esquecer que, numa noite especial, recebemos um recado em minha casa, vindo da casa do meu tio. Eu seria contratado como Office Boy no escritório de contabilidade que fazia a escrituração da sua loja. Era o antigo Escritório Rosário, de Arnaldo Levada e Luiz Antônio de Campos. Ali foi meu primeiro emprego formal.

Não demoraria muito, apenas quatro meses depois, para receber outra notícia, desta vez vinda do outro lado da família, por meio do meu primo Marcelo Fachini. Eu seria contratado como contínuo no antigo Banco Real. A agência, bem no centro da cidade, ficava na esquina em frente à Catedral Nossa Senhora do Desterro, onde hoje funciona uma loja de sapatos.

Ali trabalhei durante um ano e nove meses. Ambiente hostil, chefias autoritárias. Típico clima alimentado pelas condições políticas do país naquele momento.  Exigências além da conta. Não havia muito espaço para amorosidades, apenas entre alguns colegas mais próximos e algumas poucas chefias. O resultado foi uma demissão, seis meses antes do início do prazo para meu alistamento militar. Obviamente, seguiram-se meses de sofrimento e desemprego. Dois anos, na verdade. Para um jovem pobre isso significaria muita coisa, inclusive dois anos a menos na contagem do tempo de aposentadoria. Anos difíceis, duros demais.

Mas naquele mesmo período, um banco diferente havia inaugurado uma agência em Jundiaí. Meu pai foi um dos primeiros clientes. Na relação com um subgerente da agência, Sr. Roberto Kokubum,  foi acertada minha participação em um processo seletivo para escriturário. Consegui a vaga. Tratava-se do Banco América do Sul, que tinha algumas diferenças em relação à maioria dos outros bancos. Boa parte dos funcionários era descendente de japoneses. Apesar de ser um banco brasileiro, seus fundadores, Kunito Miyasaka e Carlos Yoshiuky Kato eram imigrantes japoneses.

Fui contratado no dia 01 de junho de 1981, um dia antes do meu aniversário de 19 anos. Uma alegria muito grande. Naquelas escadarias ao lado da Galeria Bocchino eu viveria dias felizes. Comecei na expedição, despachando correspondências. Depois passei pelos setores de arquivo, compensação de cheques, contabilidade, retaguarda, caixa, até minha última função, como tesoureiro. No geral o clima era muito agradável, menos pesado que na minha experiência anterior. Não que não houvesse contradições, mas eram administradas com menos sofrimento. Raramente alguém era demitido. Várias formas de valorização dos funcionários eram proporcionadas. Quando não conseguia se adaptar em uma função, o colaborador era remanejado para outra área, onde suas habilidades eram mais bem aproveitadas.

Ali fiz amigos e amigas, alguns com quem mantenho contato até hoje. As relações eram intensas. Vários namoros e casamentos surgiram daquela convivência. As novas tecnologias computacionais não existiam ainda. Tudo era praticamente feito manualmente, com o auxílio dos recursos que havia na época. Uma época em que havia pessoas nos bancos, que atendiam outras pessoas. Não como agora, que o atendimento é feito por uma máquina ou por um celular. 

Permaneci na instituição até o dia 05 de dezembro de 1984. O gerente principal, uma pessoa com quem aprendíamos a conviver e respeitar, porque aparentemente era fechado e inacessível, quando soube do meu pedido de demissão, me chamou para conversar e me dar conselhos. Nunca irei me esquecer deste dia. Sr. Tutomu Iderika, fazia-se perceber ali naquele momento, como uma pessoa amável e generosa. Confesso que não foi uma decisão fácil.

 Mas, sinceramente, de todas as relações com as chefias, uma em especial me tocou profundamente. Meu último chefe direto era o subcontador do banco. Pessoa de risada larga, compreensivo e acolhedor, muitas vezes também um aconselhador pessoal. Tratava-se de Toshimitsu Harano, a quem chamávamos carinhosamente de “Tombo”. Havia um costume de chamar os descendentes de japoneses por nomes em português. Ele era o Hélio.

Duas situações em especial me aquecem a memória. Um curso de atendimento ao público realizado em março de 1983. Nesta época eu exercia a função de caixa. Dentre os temas do curso estavam questões como respeito às diferenças pessoais, a empatia, a quebra de estereótipos e preconceitos. A segunda situação foi um passeio rumo ao sul do país, passando por Curitiba, Joinville e Paranaguá. Havia uma caixinha dos funcionários, destinada a angariar recursos para estas viagens. Além desta, houve outras, em colônias de férias em cidades como o Guarujá.

A formação de funcionários numa perspectiva respeitosa, as possibilidades destes passeios e alguns outros eventos de comemoração, reforçavam os laços entre todos e todas. Daquele período memorável guardo a lembrança de tantos nomes. Alguns deles me fogem, mas os rostos não. Agostinho Gregorato, Carlinhos Okumura, Cristina Miura, Edison Borges, Elaine Nadal, Elizete Ogawa (Ninha), Elizabete Taketomi, Elza Azevedo, Hiroshi Kusano, Irene Toledo, Jô Okumura, Luiza Mitiko, Maria Tamaki, Maria de Lourdes Coutinho, Maria Teresa Regação, Masaiti Ota (Mauro), Kenji Mori, Regina Aleska, Roseli Barbosa, Shirley de Souza, Valdeci Matias Ribeiro, Wady Demétrio, Claudio Giusti, Roberval Nadal, Sandra Sussi, Tetsuo Araki, Rosana Matiassi, Lincoln Shimabukuro e mais, mais pessoas, cujas imagens não saem da minha cabeça. O motorista, Sr. Agostinho, o Sr. Antônio do café, tanta gente boa e de tão bom coração. Alguns destes amigos já estão em outro plano.

Se ali tivesse ficado, certamente teria seguido em frente na carreira. Mas a vida é feita de escolhas. A minha escolha foi para seguir um outro caminho, meio atabalhoado e confuso, mas que foi providencial para eu ser o que sou.

E como a vida é um ciclo sem fim, muitos anos depois, quando eu já tinha uma carreira consolidada de professor, me encontrei com duas pessoas bonitas, um aluno e uma aluna, que seriam conexões com este meu passado de atuação profissional. Alexandre Okumura, que eu vi bebezinho no colo do pai, filho de meu antigo chefe, Jô Okumura. Uma surpresa. Convivemos bons momentos ali no Colégio Paulo Freire.    

E a vida continua estranha, propondo enigmas para que os decifremos. Faz dois dias, exatamente no dia 26 de outubro, como faço todos os dias antes de dormir, me coloquei a conversar com minha esposa. Não sei por qual razão chegamos nesta parte da minha história de vida. Minha memória foi aguçada, me lembrei de várias pessoas. Uma delas em especial. No outro dia, fui às redes sociais verificar se a encontraria. Encontrei um perfil. Confesso que até enviei uma solicitação de amizade. E qual não foi minha grande surpresa, quando percebi que entre as amizades desta pessoa estava uma outra querida aluna, com o mesmo sobrenome.

Não conseguia acreditar. Vivi vários anos como professor dela e não fiz a relação entre os sobrenomes. Marcela Harano era sobrinha de Toshimitsu Harano, o Hélio, o Tombo. Não perdi tempo e mandei mensagem para a Marcela.  E aí veio a informação de que aquele meu velho chefe havia se integrado ao cosmo. Certamente, como uma boa alma que era, está em bom lugar. A meu pedido, a Marcela me envia uma foto. Foi impossível conter a emoção ao ver aquele senhorzinho, já com mais idade, abatido pelo tempo e pela saúde frágil. Chorei de emoção. Mostrei para minha esposa, que também ficou emocionada.

Um grande enigma se decifrava em minha vida. A resposta veio emocionalmente. Como aquele homem foi significativo para mim! Lembrei-me de que um dia fui à sua antiga residência aqui na cidade. Lembrei-me daquela risada longa e gostosa, da paciência que tinha com minhas falhas como colaborador, dos conselhos, da amizade, das brincadeiras.

E senti que há uma beleza na vida, quando somos tomados por aquilo que realmente importa, os bons sentimentos que nutrimos entre nós. Em uma sociedade marcada pelo esquecimento dos mais velhos, pelo clima de incompreensão, por desavenças desnecessárias, cultivar a boa memória, com um amor humano para além de nossos limites pessoais, nos torna mais humanos, nos humaniza.

Meu pai, meu velho pai acaba de completar 81 anos, em saúde frágil. Como eu disse para a Marcela, o Hélio foi como um pai para mim. Tenho certeza que para muitos outros que ali trabalharam conosco. E não poderia me esquecer dele, mesmo que nessa correria da vida o passado pareça não mais se colocar como possibilidade para nossa humanização. Mas ele está ali, sempre presente, a nos proporcionar a decifração dos enigmas da vida.

E resolvi mostrar meu profundo respeito e gratidão a uma pessoa que foi importante para mim e que mesmo distante, não passou em branco na minha memória. Ao saber de sua outra condição, agora somente espiritual, quis render-lhe uma singela homenagem. O Hélio me fez, nos últimos dias, viver sentimentos de pertencimento a uma possibilidade de convivência, uma convivência respeitosa nas diferenças, aquela que o curso de atendimento ao público de 1983 nos proporcionou. E sou muito grato por tê-lo conhecido e vivido três anos e meio ao seu lado.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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