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O FUNCIONÁRIO PÚBLICO E A HISTÓRIA

Lá estava eu, andando pelas ruas, como sempre gosto de fazer, aproveitando a oportunidade de observação, de olhar para a arquitetura, para os espaços, para as pessoas, para as paisagens, tentando identificar nos traços que a experiencia sensível me propunha, elementos de compreensão sobre a vida, sobre as experiências vividas no passado. Encontrava pelo caminho monumentos, praças, jardins, logradouros enormes e outros pequenos, a baixa, o castelo, as igrejas. Eram tantas sinopses, num fervilhar de ideias e sentimentos de admiração, espanto, alegria pelas descobertas, integração espacial e temporal, uma simbiose cultural.

Tudo isso vivido numa cidade cosmopolita de mais de 500 mil habitantes, em que andar a pé significa se defrontar com um mosaico de experiências históricas. Eu estava em Lisboa, naquela última visita, em 2019. Queria tanto explorar tudo, mas não houve tempo para que o desejo fosse acompanhado pela facticidade. Olhava no recurso tecnológico que possibilita identificar num mapa a localização dos espaços e tentava me guiar por ali. Alguns lugares eu já conhecia de outras ocasiões, mas havia muitas descobertas por fazer.

Durante os meses em que fiquei na cidade do Porto, a mesma saga de um historiador, andando por cada milímetro da cidade, tentando absorver mais conhecimentos. Os quadriculados em cimento das calçadas pareciam me guiar. Nas antigas igrejas, ao menos em algumas delas, existem cemitérios. Andei em vários deles, mas em um especial, o primeiro, fui identificar o túmulo do escritor Camilo Castelo Branco. Ele está sepultado no jazigo de um amigo, João António de Freitas Fortuna, no cemitério da Venerável Irmandade de Nossa Senhora da Lapa. Com a ajuda de um trabalhador do cemitério cheguei ao jazigo.

A grande questão, no entanto, não foi propriamente descobrir o local. Ao adentrar no cemitério, tomei-me pelo espanto de uma ignorância própria, por não entender um costume local. Em quase todos os cemitérios não há praticamente túmulos no chão, mas jazigos em forma de capela. Todos com uma portinhola de ferro e de vidro, que proporciona o olhar curioso para seu espaço interno, onde em ambos os lados, há um empilhar de três a quatro caixões, visíveis a olho nu, expostos ao conhecimento público. Ao indagar aquele trabalhador que me ajudara, tentando saber o motivo de tal tradição, não soube me responder.

Continuei meus meses de estadia no Porto até que, no retorno para o Brasil, permaneci por mais dois ou três dias em Lisboa, onde já estivera em outras ocasiões. Portanto, voltando ao início desta reflexão, a partir da digressão da experiência do Porto e depois de explorar vários cemitérios naquela cidade, eis que, no perambular pelas ruas, me dirijo a um grande cemitério de Lisboa. Antes eu já visitara um antigo cemitério inglês, junto à igreja anglicana da cidade, além de ter visto um cemitério alemão, fechado, onde não consegui entrar.

Ali em Lisboa eu viveria uma grande experiência de conhecimento e, apesar de uma maioria de mortos me rodeando, conheci um ser vivo que me proporcionou duas grandes lições de vida, que jamais esquecerei.

Depois de tantas igrejas, monumentos, casarões, entrei no espaço do Cemitério dos Prazeres. Queria encontrar dois jazigos. Um deles, do intelectual português Jaime Cortesão. Outro, do ex-primeiro ministro e presidente de Portugal, Mário Soares. O de Jaime Cortesão é impossível não encontrar, já que está localizado bem na entrada do cemitério.

Mas o de Mário Soares não encontrava. Andei, andei e nada. Até que avistei um senhor. Perguntei e ele me levou até próximo, me indicando o local. Desci a rua indicada, mas não encontrava. Andei, andei, encontrei novamente aquele senhor. Ele me levou até lá. E ali atamos uma conversa. Seu António é nascido em Cabo Verde. Falava um português cadenciado, parecido com o nosso. Mas quase uma canção.  70 anos de idade, 40 anos trabalhando naquele mesmo local.

De chofre, voltei àquela pergunta dirigida ao funcionário do cemitério do Porto. Por que os caixões ficam expostos ao olhar dos passantes? Ele não entendeu. Perguntei de novo. Ele me devolve com uma pergunta: no Brasil, não é assim? Lhe respondi que não, que inclusive a maioria das sepulturas ficam no chão. Daí ele me explica, cientificamente, que apesar da aparência, os defuntos são protegidos por outras camadas de caixões de metal, além do ataúde de madeira. Me dá maiores detalhes, que talvez não seja o caso comentar.

A partir dali a conversa adensou. Eu lhe perguntei sobre as condições de trabalho. Ele me disse que estava satisfeito porque era funcionário público e que iria “reformar” (aposentar em Portugal) no próximo ano (agora em 2020). Que a sua estabilidade e seu salário valiam a pena. Eu disse a ele que já era professor aposentado. Ele estranhou pela minha idade, dizendo que eu era muito novo. Eu disse que recebia 700 euros de aposentadoria. Ele assustou, dizendo que iria ganhar muito mais do que isso. Claro, as condições em Portugal são outras, ele próprio, um trabalhador sem qualificações, morava em região popular, convivendo com o sofrimento de muitos imigrantes, inclusive brasileiros.

Não permiti que a conversa ficasse só nisso e me pus a perguntar sobre a história do cemitério, das personalidades ali sepultadas. E ele fez um passeio comigo, ensinando-me com ar professoral, tudo o que sabia sobre aquele espaço, que era dele também, depois de 40 anos de incursões de todas as naturezas. Sabia discorrer sobre as diferenças sociais dos ali residentes, sobre as alas mais “elegantes” do cemitério, sobre vários aspectos históricos que sinceramente, esse velho professor de história jamais saberia dizer alguma coisa. Parecia que eu já o conhecia durante muito tempo, de tão solícito e presente que foi.

Com tristeza, despedi-me, não sem antes visitar com maior veneração o túmulo de Mário Soares. Vi as fotos de seu sepultamento na internet. Um acontecimento histórico prá lá de significativo para aquele país, uma perda inestimável. Voltei a caminhar, passeando pelas avenidas, até chegar ao local onde estava hospedado.

Que sensação incrível. Falar sobre a história, o passado, numa aula memorável, concedida por um humilde funcionário público de um cemitério. Aqui o chamaríamos de coveiro. E foi esta sensação de estupefação, que me fez perceber o quão importante é o trabalho dos professores, da educação pública, de todos os servidores públicos. Me lembrei de um livro de Paolo Nosella, que fala sobre uma industrialização efetiva, em moldes plenos, que proporcione um “gancho” com a educação de qualidade social, emancipatória, num processo orgânico e não desagregador de sociedade. Uma sociedade onde a memória histórica, as experiências de todos e de todas sejam valorizadas, do mais humilde trabalhador do serviço público, com seu emprego e dignidade preservados minimamente pelo Estado, até um velho professor de história. Para que, como numa metáfora da sociedade emancipada, os dois representassem uma unidade no conhecimento e na cultura, ele ensinando ao professor e o professor valorizando a experiência dele.

 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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