Naquele longínquo 1970, em parte pelo desejo de meus pais, em parte por um decurso da cultura maior, eu e tantos/as da minha geração ingressávamos nas fileiras da igreja para fazer a catequese e receber a primeira eucaristia. Algo me fez continuar, até que logo depois, em 1973, o sacramento do crisma viria como decorrência da experiência inicial. A paróquia sempre fora administrada por párocos conservadores, com variações para mais ou menos, no perfil e na origem formativa. Eu continuava, a despeito de alguns deles, os quais acompanhei durante algumas décadas, em alguns momentos digerindo com contrariedade as suas manias, em outros compreendendo sua condição humana. Não sei por qual razão essa continuidade campeava, talvez porque a dinâmica social da cidade ensejava poucas oportunidades a filhos de operários e o pertencimento a uma experiência religiosa aparecia como “um caminho natural”.
As atividades de final de semana, a aprendizagem de um instrumento, da leitura sistematizada, as amizades, os namoros, as festas, tudo fazia parte de um “pacote” que fomentava em nós o desejo de continuidade.
As gerações anteriores, meus tios, pessoas conhecidas, também tiveram seu percurso demarcado pela participação na paróquia. Antes de ingressar numa comunidade de jovens, havia a oportunidade de participação numa comunidade de perseverança, para adolescentes. Ao atingirmos os 14 anos de idade, a possibilidade de ingressar na comunidade de jovens se abria no horizonte. Participei das duas, concomitantemente. Algumas lideranças foram cruciais para que aquele “apego às coisas de Deus” fosse visto como uma forma de vida mais apropriada.
Já por volta dos 18 anos de idade, algumas realidades novas viriam a imprimir outros rumos. O aprofundamento do contato com visões pastorais e teológicas “mais avançadas”, a dura convivência com padres difíceis, as leituras aprofundadas de tantas obras e documentos, foram redinamizando a participação na igreja. Ecoa na alma aquela dedicação contraditória às leituras do Concílio Vaticano II, no contexto de uma experiência mistificadora da fé, intramuros, burocrática, que parecia limitar a perspectiva efetivamente salvífica, já que o catolicismo do qual originávamos imaginava poder, ele sim, “nos salvar” da “mundanidade”, tão martelada pelos discursos moralistas daqueles sacerdotes formados na época anterior ao Concílio. Mas ainda havia esperanças.
Na subjetividade da experiência mística não mistificadora, a corporeidade da coletivização dos sentimentos ia se consolidando. Amigos de crença iam criando uma amalgama profunda que só uma fé esclarecida pode proporcionar. A passagem pelo seminário foi crucial para que os caminhos fossem iluminados. Alguns se renderam ao discurso fácil, comprometidos com uma visão política e de mundo atrelada às veias do conservadorismo ou mesmo na adequação aos fatos e condições pessoais de vida, que não lhes possibilitava sair desse marasmo. A maioria deixou a vida religiosa e seguiu caminhos diferentes. Muitos mantendo a fé e o amor ao Jesus dos sofredores, de todas as naturezas.
Os aliados corajosos, na acidez de sua posição crítica, éramos nós, a enfrentar as contradições daquele contexto dos anos 80 e até mesmo, rompendo barreiras pessoais que nos faziam crer, em alguns momentos, que estávamos “pecando” por excesso de crítica. Talvez muitos ainda nos vejam assim. A crítica sempre era vista como um problema de falta de adequação e fidelidade. Em vários momentos nos acusaram de anticlericais, o que nunca fomos. O amor à igreja de Cristo era por outra igreja, a igreja real, a que estava misturada na igreja concreta, mas além dela.
Hoje as convicções se intensificaram. O Jesus dos evangelhos não era o Jesus das estruturas. O Jesus do pecado e da condenação não fazia jus ao que ia no nosso coração. Enfrentamos gente arrogante, que se imagina dona da fé. As fogueiras eram de outra natureza, partiam da língua e de coração desses “outros” que não eram “como nós”. A nossa presunção nunca foi de superioridade, mas de amorosidade, na esperança de um avançar no cerne dos evangelhos.
Foram inúmeras situações, dentro e fora da igreja, em que esse enfrentamento com forças contrárias à essa nossa convicção, pensando controlar a fé coletiva, nos fizeram sofrer. Preconceitos de todas as naturezas. A figura do seminarista e do padre para nós não era a das imagens de poder e controle da fé. Era de serviço, como sempre preconizou a igreja oficial. Prova disso, como bem escreveu o bispo Dom Edson Oriolo recentemente, tomou forma uma contemporização com o “sacerdócio do espetáculo”, onde a estética, as cantorias e apelos mistificadores ganharam expressão.
Na última semana, inclusive, tomei um susto ao andar pelo centro da cidade e olhar para um sacerdote atravessando a rua paramentado com aquela velha batina preta das épocas pré-conciliares. Não houve superações como deveria. E ficamos aqui, pensando nas várias páscoas pelas quais passamos e haveremos de passar e pelas quais passam cotidianamente o povo sofrido deste país, muitas vezes vítima de raposas em pele de cordeiro, como disse Jesus, tanto no catolicismo quanto no protestantismo. Há muitas superações a enfrentar.
Os apelos que falsos líderes fazem, pela via do discurso moralizador, anticristão por natureza, não nos deixam mentir. São aqueles que proferem palavras ou escrevem documentos para “orientar condutas” supostamente contrárias à fé cristã. Uma pena. Neste aspecto, nem o papa Francisco escapa a esta cultura. Vive o limite entre o discurso acolhedor que marca o seu pontificado e a tradição que impele sua autoridade pessoal a condenar a adesão discursiva contra o que não se considera parte da tradição católica. Mas há uma tradição evangélica, superior a isso. Um homem bom premido pela cultura religiosa e que não consegue avançar.
Heverá um tempo em que a Páscoa derradeira vencerá, em que tudo isso será superado, em que seremos, se quisermos, mais cristãos do que anunciamos. Não sei, escrevo mais com um aperto no coração, porque nas conversas com esses amigos de fé de tantos anos, sinto que permanece em nós uma devoção clara, uma mística encarnada, uma identificação com o Jesus de Nazaré que não desconsidera ninguém. Nós, limitados que somos nesse percurso de busca contínua, sobretudo os/as que estamos nos dedicando a tarefas intelectuais, teríamos tudo para denegar esse Jesus acolhedor, como se ele não fosse alguém digno de admiração. Alguns dirão que “Ele” é o filho de Deus (como no velho discurso teológico de sempre) e que não deveríamos vê-lo apenas como um ser humano.
Creio, no entanto, que na Páscoa que sugere o cristianismo das origens, após a ressurreição, o filho do homem proferiu a máxima final, de que os discípulos deveriam levar a boa nova à toda criatura, como uma Paideia cristã acolhedora, em que a consideração do/a outro/a e o não julgamento prevalecem, porque no reino de Deus todos, todas possuem o direito de ingressar.
Ainda seremos vítimas dos moralistas, dos que se deixam levar por raivas eternas, por condenações e humilhações públicas, documentadas, contra aqueles a quem Jesus sempre acolherá. Resta saber quem estará certo, se nós ou essa gente perversa, que vive de discurso e de rótulos, de uma “fé sem obras”, movida a ritos frios e sem sensibilidades para com os pobres, os sofredores, os esfarrapados do mundo. São os mesmos que apoiam ataques à democracia, que movimentam o discurso de ódio, que apoiam lideranças homofóbicas, racistas, machistas. Tudo o que Jesus fazia em contrário. Gente sem sensibilidade política (não a partidária ou eleitoral) para com o compromisso necessário dos cristãos, apregoados no Concílio, com as questões temporais, a luta pela justiça e a construção de uma sociedade menos desigual.
O amor vencerá, não os ditames de uma fé historicamente atravessada pela pequenez humana. A Páscoa permanente não está sob controle, ainda haverá muita luta, virão muitas ressurreições, pessoais e coletivas, até que cheguemos ao patamar proposto pelo filho de Deus. Com ou sem a igreja institucional, jamais sem a igreja como povo de Deus.