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A PÁSCOA E A RESSURREIÇÃO COMO MEMÓRIA

Pierre Nora e Maurice Halbwachs. Um historiador e um sociólogo. Em comum, guardadas as devidas proporções de afiliações teóricas, a percepção de que os espaços e lugares permitem a reminiscência e o acesso, por meio de sentimentos e pela memória, ao outrora vivido.

Por estes dias eu tive um sonho inquietador. Estava andando pelo bairro onde fui criado. Me deparei com a igreja. Sentimentos tristes. Não via ninguém. Incomodado com o fato de que no passado da minha adolescência e de minha juventude aquele pátio fervia de gente. Andei mais um pouco. Me sentei numa espécie de mesa onde estava um rapaz que trabalhava num supermercado próximo. Ali ficamos conversando. Perguntei por qual motivo a igreja e o pátio estavam vazios. A sensação de incômodo aumentou e acordei.

Acordado, o incômodo continuou, como se eu lamentasse o fato de perceber que a riqueza daquela experiência que tive no passado tivesse diluído no presente. Éramos um monte de jovens envolvidos em uma comunidade católica, nos reuníamos no sábado à noite, logo após a missa. Não menos comum, todo domingo pela manhã continuávamos a nossa saga de afeição por aquele espaço. Nos encontrávamos de novo para conversar, participar da missa das 10h e depois tomar um aperitivo na cantina ao lado.

Foram anos, creio que quase uma década nessa rotina. Passava na banca de jornais, comprava a edição de domingo, que eu lia sentado no chão da sala. Não raro também, havia sempre uma atividade à tarde e uma diversão no período da noite. As marcas profundas desta experiência permanecem em mim. As aprendizagens, a possibilidade de liderar, o mergulho nas leituras, o convívio ímpar com amigos, o sentido da mística e da espiritualidade, em meio a tantas confusões emocionais, me propulsionaram para uma decisão difícil.

Em 1985 ingressei no seminário diocesano. Foram poucos meses, um semestre apenas, como consequência natural do que tinha vivido antes na minha paróquia, o espaço que me apareceu em sonho. No seminário aprendi a estudar, ali me apaixonei pela Filosofia, que num prenúncio impensado, na sétima série, tinha dito para uma professora que seria minha área no ensino superior. Algumas pessoas foram fundamentais naquele momento. Amizades que perduram, professores inesquecíveis. Eu desisti. Mas um fato merece destaque. Um outro lugar.

No início de março daquele ano fomos surpreendidos com a notícia de que participaríamos do Encontro Mundial de Juventude, em Roma, evento precursor das Jornadas Mundiais de Juventude. Tratava-se do primeiro encontro internacional de jovens católicos com o então papa João Paulo II. Particularmente, eu e um grupo de amigos que por essas alturas já não apreciávamos o pontificado de Karol Wojtyla, nem os grupos intimistas e espiritualistas da igreja católica, pensamos em não ir. Mas apenas um amigo tomou esta decisão, por coerência nas ideias e na ação. Talvez ele seja meu maior alter ego na fé e na esperança até hoje. Da minha parte, o entusiasmo ofuscou a razão e acabei participando do evento.

Desde início da década de 80, eu e alguns amigos já transitávamos pelo campo da Teologia da Libertação. Muitas leituras acumuladas, eventos pastorais com cunho social, compartilhamento de experiências com outras dioceses. Aquela viagem podia ser tudo, menos um reforço à nossa opção intelectual e espiritual. Nós já admirávamos José Comblin, Pedro Casaldáliga, Gustavo Gutierrez, Leonardo Boff e tantos outros. Devorávamos cada livro novo que publicavam. O amor pelo conhecimento aumentava e os poucos recursos que tínhamos eram aplicados na compra de livros importantes para aquele momento. Líamos todos os documentos oficiais, cartas pastorais, encíclicas, exortações apostólicas, todos os documentos do Concílio do Vaticano II, os documentos das Conferências de Medellín e de Puebla. Minha biblioteca ainda está recheada deles.

31 de março de 1985, Domingo de Ramos, 21 anos do golpe militar no Brasil. O lugar é a Praça de São Pedro, nove horas e poucos minutos. Ali estava ele, João Paulo II. Milhares de pessoas. Jovens do mundo todo. Em outra ocasião, um encontro especial na Capela Sistina. Ao mesmo tempo uma emoção com o inusitado e um desassossego com a situação. Mas foi um momento importante, ao menos para reforçar o que já pensava antes. Aquilo não daria certo.

Em julho conversei com então Bispo Dom Roberto Pinarello de Almeida, comunicando minha saída do seminário. Ele não aceitou muito bem e até foi bastante ríspido comigo. Hoje compreendo, mas na ocasião aquele comportamento só reforçou o que já havia decidido, seria professor de Filosofia.

Um aspecto que permanece é o sentido da mística, não como mistificação, mas como elemento da experiência transcendente. Aquilo que aparecia no sonho, uma reminiscência profunda, estava relacionado a isso. Há coisas que permanecem em nós, um sentido de pertencimento a alguma experiência cultural profunda, marcante.

Apesar do respeito que nutro para com as pessoas que se professam ateias, tenho certa reserva com aquelas que pretendem que isso se torne um “dogma científico”. Creio que não há a necessidade de se provar a existência de Deus, porque este objeto, Deus, está fora do campo das responsabilidades epistemológicas de qualquer vertente teórica, de qualquer área do conhecimento. Além do mais, a antropologia como ciência tem demonstrando que as crenças humanas em alguma divindade fazem parte da maioria das experiências culturais.

Eu ainda nutro a mística em mim. Admiro figuras importantes do catolicismo, como Francisco de Assis, Teresa de Lisieux e Rita de Cássia, considerados santos. Com a eleição do Papa Francisco, minha hipótese se confirmou. A linha de João Paulo II, persecutória e moralista, cairia por terra algum dia. Não foram poucos que sofreram com suas decisões. Mas a história é um processo aberto, como sempre digo, e aquilo realmente não deu certo.

Na minha páscoa contínua estão todas estas memórias. Os amigos e amigas queridos, inumeráveis. Os meus formadores e inspiradores, dentre eles Paulo André Labrosse. Alguns dos amigos de seminário com quem ainda me relaciono. As ideias e impressões sobre a vida, especialmente os fundamentos éticos para esta nossa caminhada errante e imprecisa. Estão também os sonhos de superação das amarras da opressão, mote principal do cristianismo no qual acredito, mesmo que não consiga mais me ajustar à igreja como instituição.

Pela minha paróquia já passaram vários ex-colegas de seminário, como párocos. Inclusive o atual também. Ali começou minha páscoa no cristianismo. Certamente ela já acontecia regularmente, como uma tentativa de ressurreição permanente. A morte de Cristo nunca me caiu bem. Sua ressurreição me parece a proposta mais existencialmente plausível: estamos todos em processo de mutação e, de certa forma, permaneceremos no mundo. Ao menos como memória de outrem.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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