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60 degraus

Como eu disse para o meu amigo-irmão Wilson Lima nesta última segunda-feira, dia do seu aniversário de 60 anos, estamos subindo mais um degrau rumo ao pódio da vida. Nascemos com apenas dois dias de diferença e ele sempre se destacou como um grande jornalista e violeiro. Estava sempre anos-luz à minha frente na inteligência, na singeleza e na comunhão com a vida.

Mas eu não posso reclamar de nada. Minha jornada foi como a de um peregrino, vislumbrando as paisagens da vida, nelas não fazendo uma paragem absoluta. Admiração e gratidão pelas experiências todas, previstas ou não. Algumas inusitadas e impensáveis.

Meus pais haviam se casado naquele longínquo 1960 e viviam num quarto nos fundos da casa da minha avó materna, numa casa acolhedora. Eu nasci no Hospital São Vicente de Paula às 1h30 da manhã. Mas eu nasci bem.

De mudança em mudança, passamos pela Ponte São João, voltamos para o Vianelo e, finalmente, fincamos parada no Jardim Rio Branco. Eu fiz meu primeiro ano primário no antigo Sesi da Vigorelli. A professora Maria Aparecida Klink foi minha primeira alfabetizadora e, depois, Zilda de Freitas Savoy e Marinêz Martins Silva completaram o ciclo.

Ali na Vila a gente curtia o clubinho nos finais de semana, andava de bicicleta na beira do rio, ou íamos até lugares mais afastados. Foi uma infância feliz, mesmo que a vida escolar não tenha sido lá essas coisas.

A juventude foi toda ela dedicada à igreja, à vida de trabalho, às experiências normais de menino pobre. Os pequenos namoros – e preconceitos -, passeios nos finais de semana, enfim, uma vida normal. Foram muitas experiências interessantes. Música, seminário, vida universitária, sindicatos, partidos, enfim, muita luta.

Mas a gente vai crescendo e aparecem também as contrariedades. Desemprego, chefes autoritários, mais dificuldades nos estudos, decepções e a consciência sobre a própria fragilidade. E a dos outros.

Chegar aos 60 anos implica muita paciência e sorte. E após algumas tentações durante a peregrinação, algumas paradas imprecisas em lugares que não eram meus, a paisagem ficou mais bonita.

A sorte de uma profissão, de poder ter estudado mais que a maioria das pessoas, de ter sobrevivido às tempestades, ter encontrado um lugar melhor no colo da minha Deia e, por fim, ter recebido a graça da minha filha.

Não é bem velhice, apesar de ser oficialmente. Agora eu e o Lima somos idosos e temos direitos diferenciados. Mas a maioria dos brasileiros e brasileiras não, infelizmente. De que nos adianta uma felicidade assim, localizada, se há desafios a enfrentar na totalidade de nossa realidade como país? Quantos idosos estão jogados nas ruas, sofrendo com a violência policial, o frio, a fome, o abandono? 

Mas boto fé, mesmo que com as naturais desconfianças de sempre, que haverá mudanças históricas em breve e, quem sabe, possamos viver um pouco mais para vislumbrar uma felicidade generalizada.

As dores do corpo são cada vez mais frequentes e tratadas a comprimidos. As da alma tentamos driblar com a lucidez, que nem sempre nos acompanha. As confusões e inseguranças, tão humanas quanto os pequenos pecados cometidos, fazem parte do nosso processo de humanização.

Não tenho mesmo queixas. Sonhos talvez, mas não ambições. Me compraz cuidar dos meus vasos, do meu Chico, fazer uma coisinha aqui ou ali. E curtir a minha Manu.

Agora é abusar da fila preferencial, pegar uma carteirinha de idoso e tentar provar que já estamos na faixa etária dos velhinhos, porque o ar jovial nos denuncia o tempo todo. E seguimos o fluxo da vida. A cada dia uma luta. A cada dia uma alegria. A cada dia uma tristeza. A cada dia uma decepção. A cada dia uma realização. Inacabamento.

Como dizia o mestre Paulo Freire, a história não se faz apenas com aqueles que estão presentes. Ela é também realização utópica. Espero sinceramente que minha filha possa materializar essa verdade, que eu possa ao menos ajudá-la de alguma forma a perceber que, como dizia o grande poeta, a vida é bonita, é bonita e é bonita.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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2 Comentários

  1. Maria Amélia Moreira

    Linda história, professor; eu me vi um pouco nela. Parabéns pelo seu dia. Tenho muita alegria de ter conhecido você e ter podido fazer parte do grupo participando de suas aulas online.
    Obrigada.

  2. Lindo texto! Parabéns, Renato! Sucesso, sempre!

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