Todo dia 19 de setembro eu me lembro de escrever algo sobre Paulo Freire. A data de seu aniversário coincide com a quase revitalização do tempo, a chegada da primavera. Quando esta ocasião desponta, procuro refletir sobre algo que está relacionado com a minha própria experiência concreta com o estudo da obra de Freire. O que me move hoje é argumentar sobre a dúvida em torno dele ser ou não ser um autor marxista.
Foram os autores americanos críticos, como Peter MacLaren e Henry Giroux, ambos marxistas ligados à Teoria Crítica da Sociedade, que atribuíram a Freire a paternidade da Pedagogia Crítica. Curiosamente, MacLaren é admirador do escritor socialista inglês William Morris, que foi o grande influenciador de outro marxista, o historiador inglês Edward Palmer Thompson. Recentemente escrevi um artigo que aproxima Freire e Thompson, que são autores que possuem muitas similaridades em suas experiências. Thompson, assim como Freire, foi educador de adultos fora dos círculos acadêmicos e um crítico feroz dos desvios promovidos pela ortodoxia marxista do Partido Comunista Inglês nos anos 50, desvios estes ligados sobretudo à adesão incondicional ao stalinismo e à aproximação das investidas negacionistas da história patrocinadas pelo filósofo francês Louis Althusser.
Freire e Thompson são considerados, em seus respectivos campos, intelectuais muito respeitados e reconhecidos em todo mundo. O Arts and Humanities Citations Index (1976-1983) coloca Thompson entre um dos 250 autores mais considerados em todos os tempos. O mesmo acontece com Paulo Freire, que no levantamento feito pelo professor Elliot Green, da London School of Economics, por meio da ferramenta Google Scholar o indica como o terceiro pensador mais lembrado do mundo em universidades da área de humanidades, citado 72.359 vezes.
Outra aproximação se deve à característica questionadora de ambos em relação a ortodoxias. Há, então, uma grande celeuma em torno da ideia de Freire ser ou não ser um marxista. Alguns pretendem que ele apresente uma carteirinha de filiação a alguma tendência do marxismo para ser considerado um bom intelectual. É fato que as primeiras influências teóricas de Freire vieram do personalismo cristão de Emmanuel Mounier. Um bom leitor deste filósofo saberá o quanto ele demonstrava apreço pelo marxismo, considerando esta expressão filosófica imprescindível para “fazer acordar” os cristãos católicos não atentos à dinâmica do funcionamento do modelo capitalista de sociedade. Obviamente Mounier não era marxista e até mesmo criticava duramente o chamado “comunismo”, mas não se pode negar sua honestidade intelectual.
Como se sabe, Freire sofreu várias influências. Na Pedagogia do Oprimido há até mesmo uma certa incorrência num ecletismo marxista, quando não faz distinções entre autores e líderes políticos influenciados por Marx. Ao mesmo tempo em que recorre a Gramsci e Lukács, francos críticos renovadores da ortodoxia marxista, Freire menciona Althusser, o provocador da celeuma com Thompson e enaltecedor da superestrutura mais que a dinâmica da história, um contrassenso doutrinário nada humanista.
O que haveria de marxismo em Freire, então?
Muitos aspectos de suas posições posteriores à Pedagogia do Oprimido estão presentes em algumas obras, entrevistas e artigos talvez pouco conhecidos, em que suas críticas ao modelo de sociedade capitalista estão aprimoradas por um domínio maior do instrumental marxista. Como é de conhecimento de grande parte dos educadores e educadoras ligados ao marxismo, Gramsci é o referencial maior das chamadas Pedagogias da Práxis. Para alguns, incluir Freire neste espectro consistiria uma heresia. Encontramos com maior destaque nesta classificação a chamada Pedagogia Histórico-Crítica. No entanto, há elementos valorizados por Gramsci, como a dinâmica histórica do “chão da sociedade”, especialmente as lutas de trabalhadores agrícolas do Sul da Itália e dos operários de Turim, ao norte do país, que em muito inspiram a fase inicial do método de alfabetização de Freire. A cultura do povo, ou a “história vista de baixo” – como diz Thompson – são elementos fundantes de uma luta social de inspiração marxista e não os arroubos idealistas de correntes filosóficas que pretendem suprimir o dado histórico empírico das leituras sobre a vida em curso. Isto está claro na defesa que Gramsci faz da associação entre o trabalho intelectual e o trabalho feito com as mãos, na medida em que coloca o primeiro a serviço do segundo, mas não dissociados. Uma polêmica a este respeito envolveu o filósofo Norberto Bobbio, que via em Gramsci uma originalidade em relação a Marx, o destaque a um dos elementos da superestrutura, a cultura, como constituinte da relação dialética entre pensar e agir. Isso não significa que Gramsci se prendia ao universo da racionalidade, ao contrário, sua filosofia da práxis acentuava a necessidade de a teoria descer ao chão da realidade. O mesmo foi feito por Freire.
Também não se pode negar, como demonstrei em meu mais recente trabalho, a proximidade entre as relações entre educação e trabalho nas obras de Gramsci e Freire. Ambos não desaproximam a prática social do trabalho da prática social da educação.
Haveria muito por dizer. O que me move nesta breve reflexão é o sentimento de que o desprezo a Freire – pela direita e pelas ortodoxias à esquerda – parte de um profundo desconhecimento do seu significado na história da educação brasileira e mundial. Há no Brasil e no mundo inúmeros estudiosos e estudiosas da obra de Freire, pessoas a quem admiro e respeito profundamente. Creio que entre eles existem aqueles que concordariam com o fato de ser Freire um marxista não ortodoxo. Certamente a última fase de sua vida foi marcada pela aproximação com a Teoria Crítica da Sociedade de vertente americana, mais do que anteriormente. Na minha modesta opinião Freire está mais para Gramsci e Lukács do que poderiam imaginar seus críticos mais ortodoxos. E mais para a amorosidade e a compaixão cristãs do que suspeitariam os destrambelhados da direita. Assim como Gramsci, Lukács e Thompson, um marxista humanista, aberto aos destinos da história e pouco preso a um manual discursivo desprovido do sentido da vida prática.