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Entre a morte e o demônio está a redenção: o amor vencerá

Eu era um garotinho com cerca de 10 anos quando assisti pela primeira vez um filme sobre a vida de Jesus de Nazaré que me impactou. Nós não tínhamos televisão em casa e numa daquelas adoráveis visitas à casa de meus tios Adunírio e Aparecida, naqueles contextos de páscoa extremamente marcantes para mim – e que me marcam até hoje na memória – padeci de uma estética implacável misturada com um sentimento de transcendência. A cada ano que passava eu desejava que chegasse bem rápido novamente o período da celebração da morte e ressurreição de Cristo para assistir novamente aquele filme, que as emissoras de TV faziam questão de reprisar. O filme em questão, The Greatest Story Ever Told, título traduzido no Brasil como A maior história de todos os tempos, conta com a participação de um time inigualável de atores, como José Ferrer, Van Heflin, Charlton Heston, Martin Laudau, David MacCallum, Roddy MacDowall, Sal Mineo, Donald Pleasence, Claude Rains, Telly Savalas, John Wayne, Sidnei Poitier, Robert Loggia, Dorothy MacGuire, dentre outros.

E evidentemente, o protagonista, Max Von Sidow, ator sueco que havia se destacado nos clássicos do cineasta Ingmar Bergman. Meu fascínio não foi propriamente por aquele tipo de Jesus europeizado com olhos azuis, mas sobretudo pela interpretação e talvez pela primeira versão humanizada de Jesus no cinema. Uma das cenas marcantes, à qual voltaremos mais adiante, que ilustra este artigo, a do perdão à “mulher adúltera”.

Max Carl Adolf Von Sydow faleceu hoje, aos noventa anos, para minha grande tristeza, porque o considerava meu ator preferido no mundo do cinema internacional. Suas interpretações em outros grandes filmes sempre o colocaram no hall dos maiores atores de todos os tempos. Recentemente teve uma rápida aparição no frisson da série The Game Of Thrones, como o Corvo de Três Olhos. Mas a lista de suas participações é longa.

Na linha do tempo de suas atuações eu destaco metaforicamente três grandes produções para aproveitar o ensejo de promover uma reflexão sobre o contemporâneo. Os filmes são O Sétimo Selo (1957), A maior história de todos os tempos (1965) e O Exorcista (1973). São as produções cinematográficas que, talvez, mais marcaram a carreira de Sidow. A projeção veio justamente com o filme sobre Jesus de Nazaré.

Em O Sétimo Selo, Sidow interpreta Antonius Block, um cavaleiro medieval que ajuda um grupo de artistas a enganar a morte, entretendo-a para que fujam. Nesta produção, Bergman sugere que a única salvação para a humanidade é a preservação da arte e da cultura, contra todo o tipo de morte, principalmente da humanidade como um todo. Todas as categorias sociais diferentes dos artistas estão fadadas ao desaparecimento.

Hoje estamos à espreita da morte, atordoados com as agruras do nosso tempo, desgastados em nossas relações sociais mais básicas, enfiados em nós mesmos, transmitindo para as gerações futuras, nossos filhos, a mesma básica percepção sobre o real: a vida coletiva não existe, cuide de seu próprio umbigo. Não há espaço para a generosidade, para solidariedade, que viram apenas formas de perpetuação do poder por meio do discurso empobrecido e descolado da realidade: seja do bem! Quem será o cavaleiro que enganará a morte para preservar a arte, a salvação da humanidade? Sobreviveremos às trevas medievais (com o perdão do exagero semântico ao me referir ao período em questão).

Invertendo a ordem cronológica dos filmes, pulemos para O Exorcista. Eu o assisti pela primeira vez no antigo Cine Marabá, em Jundiaí, naquela sessão noturna especial de sábado a noite, que só exibia filmes de terror. O roteiro surrado apresentava uma criança que, depois de ter passado por todos os tipos de acompanhamento psiquiátrico, é concebida como uma pessoa possuída pelo demônio. Sidow faz o papel do padre Lankester Merrin, um arqueólogo estudioso das forças espirituais maléficas a partir de escavações na região do Iraque. Ele tenta ajudar o jovem sacerdote Damien Karras, um psicanalista em crise de fé. Aqui salta aos olhos o combate ao demoníaco que emerge como força além do bem, em grande medida sobrepujando-o temporariamente, até a morte dos dois sacerdotes. Uma espécie de visão salvífica prenunciadora de nossa reflexão. Há algumas associações (concretas ou não) entre a figura do padre Merrin ao grande paleontólogo, perseguido pela igreja católica, um dos maiores inspiradores da mística da genealogia cristã, pensador a quem admiro com respeito, Padre Pierre Teilhard de Chardin, a quem dediquei parte de um dos meus livros. A salvação vem pela arte e pela ciência? Pobre arte, pobre ciência no Brasil.

Sobra-nos, por fim a obra que consagrou Max Von Sidow, A maior história de todos os tempos. Se a película reproduz as concepções cristãs da época, de um Jesus fisicamente europeizado, de olhos claros, alto e branco, há elementos cênicos que podem ajudar como alinhavado desta pequena sugestão de pensamento. As cenas do anúncio da boa nova em que Jesus lê a Torá na sinagoga, apresentando-se como a o messias; da ressurreição de Lázaro; do perdão “à mulher adúltera” e da expulsão dos vendilhões do templo não são paradigmáticas. Ao contrário, na minha opinião de espectador (não de crítico de cinema), são reveladoras do cerne da mística cristã: o amor ao próximo no anuncio de si mesmo feito por Jesus, a crítica e a condenação à hipocrisia do formalismo religioso (ao perdoar alguém que não poderia ser perdoada na época, pela lógica tosca da visão punitivista do judaísmo clássico daquele período), o apontar para o sentido da mensagem evangélica da dissociação entre o sentido da transcendência com a mesquinhez humana do ter mais e, por fim, a superação da maior forma de morte existente, a morte física.

Jesus ressuscitado, no entanto, ficou para trás na representação daquela páscoa que me fisgou na primeira vez em que vi o filme: a morte é superada com processos de reinvenção da vida. As religiões cristãs, infelizmente, reproduziram mais a ideia do sofrimento de Cristo que de sua ressurreição. Aquele contexto medieval de O Sétimo Selo, prevaleceu no discurso. E no cinema, naquele filme de quinta qualidade produzido por Mel Gibson, símbolo da lógica neoliberal da celebração do sofrimento em detrimento do direito à vida.

Mas terá morrido o sentido da redenção? Haveremos de superar as idiossincrasias humanas? Haveremos de continuar negando a generosidade, o perdão, a solidariedade? Continuaremos disseminando ódios e ignorâncias? Abriremos mão da arte e da ciência em nome de uma fé cega, sem sentido? Pior, parte da sociedade continuará a associar essa fé cega às formas mais baixas de poder? Haveremos de continuar órfãos do conhecimento, órfãos da sensibilidade ética? Haveremos de continuar a reproduzir os lugares comuns da consciência, negando o papel que nos cabe nos processos de conscientização? Triste perceber, como educador, que há muitos colegas meus cegados em mesmices “interpretativas” sobre a vida, sobre a arte, sobre as experiências religiosas, sobre o que é a vida política, a humanização, a busca pela cidadania, pela consolidação dos direitos humanos.

Tristes tempos em que vejo ex-alunos, alunos, colegas de profissão reproduzindo a ignorância, por falta de leituras mais amplas sobre o mundo, que em grande medida lhes oferecemos, como mediadores do acesso á cultura e à ciência. Uma tristeza que o sentido fundamental da Ética Universal do Ser Humano, criada e defendida por Paulo Freire, passe ao largo da vida dessas pessoas.

Mas a esperança está na lógica desta cronologia cinematográfica que indiquei: a redenção virá no decurso do processo temporal, quando entre o enganar a morte e a presença demoníaca está a redenção. A redenção está no meio, no meio dos processos históricos. Muitos não percebem esta receita básica. Não está no fim dos processos, mas no seu transcurso, quando resistimos e combatemos todo empobrecimento humano, toda forma de aviltamento, toda presunção de conhecimento vinda das ignorâncias torpes, todo medievalismo de princípios. Mas haveremos de perguntar ainda, no final das contas: qual será o desfecho no final do filme? Qual a cena final? Eu escolhi a mais apropriada às minhas experiências: cultivar humanamente o amor, mesmo diante de tanto ódio, de tanta pobreza política, de tanta destruição da arte, da ciência e da educação.

 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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