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Bípede Implume?

Na Grécia antiga, os discípulos de Platão viviam discutindo o sentido da existência. Perguntavam-se sobre o que é, afinal, o ser humano. Como é sabido, entre os humanos, chegar a alguma conclusão a respeito de algum tema é algo praticamente impossível, sempre haverá pontos de vista diferentes. No entanto, os seguidores do filósofo, naquela circunstância, retiraram uma definição para o homem de dentro de uma cartola: “o ser humano é um bípede implume”.

Mas sempre tem alguém do contra. Diógenes, o Cínico (e o cinismo filosófico nada tinha que ver com o atual cinismo, trata-se de uma disposição constante para o questionamento, desconfiando das virtudes humanas), ao encontrar-se com os seguidores de Platão, trouxe uma galinha sem plumas e disse: “Vejam! Eis um ser humano!”.

A brincadeira causou desconforto. Então os pupilos de Platão se reuniram novamente e decidiram: “o ser humano é um bípede implume de unhas largas”. O evento só vem provar que, para todas as questões que nos atormentam, sempre haverá algum espertinho que sairá com uma dúvida, questionando o que parece consensual. Convenhamos que definir o ser humano a partir da ideia de galinha não é nada reconfortante, muito menos separarmo-nos delas por conta de unhas largas ou penas.

Se não somos bípedes implumes, o que seríamos? Difícil responder. Vários filósofos tentaram dar cabo desta questão, sempre aberta. Alguns deles pensaram o ser humano a partir da experiência mesma do viver, como é o caso dos existencialistas. A existência precede a essência, dizia Sartre, reforçando a crítica da filosofia contemporânea às tentativas metafísicas, descoladas da realidade, de explicação do que somos a partir de qualquer absoluto. Somos aquilo que fazemos de nós mesmos. Há um imenso campo de possibilidades, escolhas e também de inúmeras consequências. A responsabilidade que deriva dos traçados que rascunhamos nos obriga a assumir o que fazemos e pensamos.
Contraditórios, conseguimos desenvolver traços de generosidade tanto quanto de animosidade. Agimos a partir de premissas mais ou menos racionais como também por impulso. Temos certezas inabaláveis que se tornaram nossos princípios, mas em alguns momentos ficamos em dúvida sobre sua viabilidade. Isso é o ser humano. Nada de bípede implume, mas de um misterioso espécime dentre tantos na face da terra, que se indaga e pergunta: afinal, quem sou eu?
Se formos aquilo que fazemos de nós mesmos, podemos tudo? Nem tudo depende do que queremos, há circunstâncias de todas as espécies, sociais, psíquicas, emocionais e materiais que nos limitam. O exercício da liberdade de autocriação dentro deste quadro existe, mas está situada. O intervalo de tempo entre a vida e a morte, como diria Heidegger, poderá valer a pena. Como ele próprio dizia: “A questão da existência nunca é explícita, exceto pelo próprio existir”.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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