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Afeto Afetado

Uma situação vivenciada e narrada por Paulo Freire, bastante conhecida, serve de mote inicial para esta reflexão. Quando exilado político no Chile, caminhava pelas ruas de Santiago com um amigo e colocou a mão em seu ombro. O amigo ficou constrangido. Paulo Freire perguntou o que havia e o amigo disse que no Chile aquilo era incomum. Paulo Freire pensou: “há algo muito estranho com a cultura deste povo”. Quando foi trabalhar no Conselho Mundial das Igrejas, na Suíça, Freire visitou vários países africanos. Na Tanzânia, um tanzaniano passou a andar de mãos dadas com ele, que se sentiu constrangido e pensou: “há algo muito estranho com a cultura do meu povo”.

Como dizia Nietzsche, “a vontade de superar um afeto não é, em última análise, senão vontade de um outro ou de vários outros afetos”. Devedores culposos, melindrados pela cultura do afastamento, recusamos o que parece “natural”. Também muito engraçado o uso que fazemos das palavras. Afeto vem de afetar, que no cotidiano da língua portuguesa significa, quase sempre, provocar um prejuízo. Sim, muitos de nós entendemos o afeto como prejuízo. Seu mais puro e completo significado está associado ao conceito ético de cuidado, aquela preocupação que temos com o que deve e merece nossa atenção.

Os olhares desavisados, dos menos sensíveis, enxergam desvios de intenção quando a retidão do cuidado enseja promover, ajudar, acarinhar, elevar o outro a uma situação de bem estar. Nos ambientes acadêmicos de trabalho, infelizmente, estamos contaminados pela cultura da competição, essa que dizemos combater como bons agentes intelectuais “da esquerda”. Em nome do suposto bem geral, prejudicamos o afeto, por mais paradoxal que possa parecer. A consideração ao outro, por conta das diferenças, fica em segundo plano, diante da “sua ameaça” ou como diria Sartre, dele ser um inferno.

Esforço hercúleo lidar com os próprios sentimentos, as próprias razões. Caminhamos trilhas adentro em nossa vida, circundando o caminho central, aquele que nos promove como pessoas, que nos aprimora, que nos humaniza. Uma pena que assim seja, que ninguém escape, de alguma forma, aos afetamentos da falta de afeto. E afetado, o afeto fica fora de nossas atitudes interiores, porque visto como sintoma de fraqueza, de má intenção, de “algo incomum”. Insistimos em desaproximar, em acentuar “as nossas” razões, intenções e interpretações sobre os acontecimentos, já que estamos sempre certos de nossas certezas. Voltando ao velho Nietzsche, em um de seus costumeiros aforismos, “tudo o que é absoluto pertence à patologia”. Menos a simplicidade do afeto, que aproxima corações e nada tem que ver com a “melosidade”, diga-se de passagem.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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