Marcia Tiburi, filósofa brasileira, evoca um dizer de Shakespeare, numa discussão sobre a felicidade no programa “Sempre um papo”, para se referir ao sentido da vida. Diz o grande literato, que a vida é a sombra de um sonho, nem um sonho é, mas a sombra de um sonho.
Intriga-me, nas cenas do cotidiano, que essa sombra desse sonho esteja em curso, na atitude cuidadora e ao mesmo tempo resignada de uma varredora de rua, nos relatos de meu pai, que aos 74 anos, se lembra dos nomes de colegas de classe do primeiro ano de sua vida escolar, nas coincidências e aproximações entre pessoas, frutos do acaso. Nesse sonho que é apenas sombra, o percurso histórico se constrói, na vida de cada um, tecido nesse emaranhado de agires e sentires que nos dão forma como seres vitais.
A reflexão que me motiva é relativa ao fato de como é impensado esse sonho, por isso torna-se apenas uma sombra dele próprio. Mesmo que o homem seja autor de seu processo histórico, há percalços e vicissitudes que lhe fazem refém de um jogo de encaixes de peças. Nem todas encaixam, é bom lembrar. Por mais que pensemos que temos o controle das coisas, elas sempre nos escapam por entre os dedos. Claro que há mitos pragmáticos que nos fazem crer numa eficácia administrativa da vida. Ledo engano. Como diz a máxima evangélica, se soubéssemos em qual hora viria o ladrão, nos colocaríamos em vigia. Não significa que nada conseguimos prever, projetar, organizar, aprimorar. Seria também viver sem sentido e não encontrar algum prazer no existir se não alimentássemos sonhos possíveis. Mas serão sempre fugazes, limitados, efêmeros, já que tudo passa.
Gosto de visitar os cemitérios. Em parte pelos interesses de pesquisa de um historiador. Por outro lado, ao olhar para aquelas fotografias, vejo como o sonho enquanto sombra se concretizou. São olhares, tristes ou alegres, mas concretos. A rapidez de nossa passagem pela vida material nos deixa impressionados. Pessoas que até ontem conviviam conosco já não se encontram mais aqui. E amanhã não estaremos mais com tantos outros com quem convivemos. O que permanece é a memória das nossas realizações, ao menos durante um tempo, se for preservada por aqueles com quem convivemos. Geralmente não é.
Há a necessidade de esquecimentos, para que o “curso normal da vida” continue. Mas o registro fica, permanece na memória. E as sombras da vida que foi um sonho, permanecem como sombras. E a vida não vivida, que é o sonho, continuará sendo apenas sombra de um sonho. A única possibilidade de que a vida faça sentido é que procuremos alimentar alguns sonhos que atribuam significado à vida, mas que não sejam sombras. Neste caso, penso eu, apenas pequenas realizações, mas poderosos sonhos sem sombra.