Por vezes o pincel desliza pela tela da vida com tons acinzentados, sugerindo que nem tudo vai bem. Em outras oportunidades, carrega a clareza da luz que as cores mais claras vão projetando como sinais de esperança.
Quem já não se retorceu diante das agruras do existir? Quem não enfrentou a morte, a separação, o desespero da aparente falta de sentido em tudo que faz? Quem não se sentiu interpelado por vozes interiores, algumas que representam uma sabedoria que nos falta, outras que debocham ironicamente das situações que vivenciamos?
Os filósofos clássicos ressaltavam em suas proposições teóricas mais expressivas, a vinculação entre o belo e o bom. Foi o que fez Platão, por exemplo, quando associou a ética à estética por meio do conceito/expressão grega kalokagathia. A virtude está em íntima conexão com o sentido de uma vida bela. E viver é tão bonito!
Se fosse possível, por uma desses devaneios da existência, que alguém se visse “preso” dentro de um quadro, em meio a tonalidades claras, sendo interpelado por dois alter egos, um debochado e irônico, outro sábio e questionador, o que faria? Como num sonho indescritível, estaria disposto a “ouvir as vozes interiores” da razão e da sensibilidade para se reposicionar na vida? Estaria disposto a “olhar com mais carinho” para as suas supostas perdas materiais/existenciais e se reencontrar consigo mesmo?
Este é o enredo criativo que uma amiga de juventude escolheu para escrever seu livro, contextualizando sua narrativa nestes terríveis tempos de pandemia. Interessante notar que muitas pessoas de nosso passado longínquo, mesmo que estejam com sua imagem gravada em nossa memória, nos surpreendam com notícias do presente, sua própria experiência de vida no curso histórico – parte dela que sequer tínhamos conhecimento – fazendo-nos refletir/assimilar compreensões sobre a dinâmica da vida, que coadunam com muito do que percebemos/sentimos sobre o que de fato vale a pena na nossa jornada.
A pandemia talvez seja realmente um bom contexto para escrever uma história. E, diga-se de passagem, muito bem escrita, em parágrafos curtos, mais cheios de significado. Os filósofos geralmente rebuscam suas produções em textos mais densos, com muitas linhas, que compõem essas partes do texto, os parágrafos. Mas a qualidade das reflexões nem sempre depende da quantidade do que se escreve. Já os enredos não, eles podem ser densos e expressivos, capilarizados na experiência concreta da vida, tornando um personagem comum em protagonista de uma história que mistura ficção, filosofia, psicologia, literatura, com boas doses de análise sociológica. É o que vi no livro escrito pela minha amiga de ginásio, Márcia Scurciatto, cujo título é “O quadro mágico”. Uma leitura feita pausadamente, demorada, até mesmo preguiçosa, no bom sentido da expressão, como naquele dizer de um filósofo, torcendo para que o livro não termine nunca. E com a felicidade em saber o como a Márcia escreve tão bem. Nossa geração não passou a vida ao acaso. Muitos/as de nós, mergulhamos na existência com muitos desejos a realizar, possíveis e inusitados talvez, devido à nossa condição de classe.
Não vou dar um spoiler geral sobre os detalhes, personagens, situações. Deixo para que quem me lê adquira o livro e leia. Só quero dizer que me identifiquei com o texto porque vivi na pele todas as situações que o protagonista viveu. Todas, sem tirar nem por. Perdi um filho, me separei, enfrentei a morte, passei pela enfermidade, pelo desemprego, pela amargura da falta de sentido no exercício profissional. Algumas pequenas variações aqui e ali, mas situações praticamente idênticas. Comuns à maioria das pessoas.
E achei uma bênção da natureza espiritual que uma pessoa que estava tão distante no “quadro” da minha experiência vital, tenha me proporcionado tão boa aventura, uma reificação de minhas posições na vida, minhas crenças mais profundas. Uma graça. Dádiva divina, benfazeja.
É uma honra ler a resenha de quem tanto admiro. Muito obrigada! Forte abraço.