19 de setembro. Tinha que ser primavera. Já cedo o sol estava estrelando e estalando. Abrimos a porta da sala e colocamos a nossa filha Manuela sentadinha no tatame dela para olhar o que tem lá fora. Nosso quintal está repleto de sensações. A copa das árvores, o canto do galo do vizinho, a luminosidade intensa que corresponde ao desejo de viver, as orquídeas e gerânios florindo, as árvores frutíferas explodindo em flores e frutos. Ali naquele lugar (o atual lugar social da Manuela) é de onde ela faz sua Leitura de Mundo. Há tantos que gostam de viver, há tantos que amavam viver e gostavam de tudo que existe por aí, as flores, as árvores, os rios, os bichos…. A Deia desceu com a Manuela no quintal, para que ela possa pegar as folhinhas, ouvir os passarinhos. E eu estou aqui pensando no que escrever. E para que? Tem tanta gente fazendo isso hoje. O meu quintal parece o da infância de Freire e será o da Manuela. Que relação fantástica.
Quando me levantei, como faço todo dia, fui olhar as mensagens. Eram inúmeras. Nas redes sociais uma enxurrada de textos e eventos neste 19 de setembro. Confesso que já faz muitos anos, décadas, que todo santo 02 de maio e todo santo 19 de setembro eu me manifesto de alguma maneira. Perdi a conta de quantos artigos já escrevi para jornais, blogs, para o meu site, para revistas. Quantas palestras, encontros, eventos no Brasil e no exterior, experiências de ouvir e falar. Livros sobre o nosso aniversariante já foram 5 até agora e mais um que vai sair até o final do mês, além de outro que está programado. Do que eu já li não tenho como dizer com precisão. Mas posso falar sobre onde andei na vida. Posso descrever como foi comigo. E sinceramente, quanta gente boa nesse mundo afora já escreveu tanta coisa importante! Eu não. O que eu teria a acrescentar de tão “sui generis”? Creio que praticamente nada ainda.
Eu adoro biografias. E autobiografias. Sobre Paulo Freire eu prefiro a da Nita Freire e a do Sérgio Haddad, detalhistas, complexas e ao mesmo tempo acessíveis. E Paulo Freire escreveu “Cartas a Cristina – reflexões sobre minha vida e minha práxis”, uma deliciosa viagem autobiográfica em cartas endereçadas à sobrinha, em que ele interpreta sua própria experiência. Leio devorando, todo dia, algum texto, ao menos alguma coisa pequena, sempre tentando descobrir novo detalhe. E há descobertas. Nesta semana descobri algo fantástico. O método Paulo Freire de Alfabetização já foi aplicado em Jundiaí. Sobre isso, fica para uma próxima oportunidade.
Você toma consciência do quanto já aconteceu quando chega perto da categoria da velhice. Alguns chamam de melhor idade, mas confesso que a minha artrite, minha osteoporose, a trombose na perna, a tromboembolia pulmonar com enfarto no pulmão que tive recentemente não me permitem mais muitas aventuras físicas, nem mesmo no meu quintal. Sobra o que sempre fiz, desde menino, quando eu nem tinha uma prateleira decente na minha casa, uma estante qualquer. Havia um pequeno guarda-roupas que eu dividia com minha irmã. Ali eu guardava meus tesouros, meus livros. E também os LPs dos Beatles, que tenho até hoje. Gosto de livros. Trabalho com eles, leio, edito.
O que conta não é mais a idade, os sessentinha que se avizinha, mas as memórias, os sentimentos. E de tudo o que vivi, uma grande parte foi intensificada nos últimos 40 anos pelo gosto gostoso de ler e aprender sobre Paulo Freire.
A minha geração foi marcada por uma escola autoritária. Eu, particularmente, sofri com a injustiça de duas reprovações no ginásio por causa da matemática. Naqueles anos 70 não havia a compreensão da chamada “visão global do aluno”. Eu ia bem em quase tudo, menos na matemática. Foi o suficiente para uma professora pedir minha cabeça. No corpo docente, apenas alguns possuíam uma sensibilidade pedagógica que escapava aos ditames da lei 5692/71, a famigerada lei do Passarinho, que detonou as humanidades.
Nosso professor de educação física era um capitão do exército. Agora estão querendo reeditar a medida, não só com as escolas militares, mas substituindo os professores e professoras do Ensino Médio por pessoas com “notório saber”, uma excrescência pedagógica que só tem lugar na cabeça dos mais toscos dirigentes políticos deste país. Mas ali no ginásio eu convivi com alguns amigos e amigas que, posso dizer com certeza, tinham uma genialidade talvez pouco observada. Só pra lembrar, tinha o José Arnaldo de Oliveira, o Wilson Lima, dois jornalistas de mão cheia, amigos queridos com quem convivi e mantenho a amizade até hoje. Descobri recentemente que a Márcia Scurciatto se tornou escritora. E escreve muito bem, por sinal.
Como todo menino filho de operários, aos 13, 14, a gente já estava na labuta. Aos 15 tive meu primeiro emprego formal. Era trabalhar e estudar no período noturno. E as reprovações escolares nos desanimavam. No meu caso foram várias, além daquelas duas primeiras do ginásio. Até que um dia, por um acaso da vida, eu fui para a escola supletiva. Se Paulo Freire fosse utilizado em Jundiaí, eu teria feito a EJAI – Educação de Jovens, Adultos e Idosos. Nesta altura eu já estava muito envolvido com a militância na Pastoral da Juventude.
Um pouco antes, em 1980, do alto dos meus 18 anos, devido a esta mesma militância, tive contato com pessoas que possuíam uma outra leitura da igreja católica. Aqui em Jundiaí as coisas sempre foram muito tenebrosas. E não sei por que cargas d’água alguém me sugeriu ler a Pedagogia do Oprimido. Eu não tinha a compreensão dos motivos daquela obra. Mas a militância na Pastoral da Juventude, cada vez mais se acentuava por caminhos diferentes, mais politizados, pelo viés da Teologia da Libertação. Até hoje eu uso o anel de Tucum, uma parte da indumentária que não desgruda da gente. Daí até meu ingresso no Seminário Diocesano foi um pulo, mas não faltou antes, viver as experiências normais que eram previstas para um mancebo: o trabalho, os namoros, a escola, a família, os amigos. Tudo normal.
Em 1985 as coisas já estavam fervendo na minha cabeça. Cursar filosofia no seminário foi significativo para mim, uma mudança de rumos na minha formação escolar. Conversava muito com os mais velhos. Um deles disse que se eu tivesse dúvidas sobre o que fazer, que fosse estudar filosofia por conta. Foi o que fiz. Voltei a trabalhar e ingressei no curso de Filosofia da PUC-Campinas. E ali muita coisa mudou. O contato sistematizado com as leituras das obras de Paulo Freire, numa disciplina ou outra, as aulas com professores e professoras ligados/as a Freire, foram salutares na minha formação. Um antigo mestre da Filosofia e da Educação tinha sido importante na formação daquele curso da PUCCamp, Antônio Joaquim Severino.
Formado, eu estava pronto para enfrentar a escola pública como professor, pensava na minha ingenuidade. Foi preciso que a atuação sindical a desmistificasse. Mas esta luta nos sindicatos (dos professores da rede pública e das escolas particulares), misturada com o apoio que recebíamos dos grêmios estudantis, seria importante para reforçar a necessidade de rever as práticas. Havia uma resistência em nós mesmos, professores e professoras. E Paulo Freire sempre aparecia nos discursos dos líderes, nas reuniões locais.
Abandonei um mestrado em Filosofia ao meio. Decidi buscar outros rumos, quando pela sugestão de alguns amigos acabei mudando para a História Social. Fiz o mestrado na PUC-SP, entre os anos de 1992 e 1995. Era no quarto andar do prédio novo, em Perdizes, o mesmo do Programa de Pós-graduação em Educação, onde Freire lecionava. Assisti recentemente um depoimento de Dermeval Saviani sobre este período. Mas o Sérgio Haddad o descreve melhor, inserindo-o num contexto em que Freire era muito requisitado. E ele estava pelos corredores, difícil não o vislumbrarmos, de longe.
Em 1997 ingressei como professor de História na Cooperativa Educacional de Jundiaí – Colégio Paulo Freire. Esta comunidade teve a visita de Freire logo após a inauguração. Ele autorizou o uso de seu nome, condicionando que se assumisse o compromisso em pagar bons salários para os professores e professoras e escreveu uma frase que seria uma marca da história da escola: “Cheguei. Vi. Ouvi. Perguntei. Espantei-me. Gostei. Voltarei.” Fui contratado e, em princípio estava muito motivado pela minha recente formação em História Social, com a didática da História temática na cabeça. Tinha sido aluno da grande historiadora Déa Ribeiro Fenelon, orientando de Yara Khoury, cheio de ideias. Mas logo apareceram os problemas. Como era possível em uma escola com este nome a recusa de uma proposta de ensino temático? Como era possível numa comunidade cooperativista encontrar tantas resistências ao diálogo qualificado? Ali trabalhei por 16 anos. Os últimos 8 na equipe de gestão. Entre idas e vindas, muitas alegrias e alguns problemas. O projeto do Ensino Médio, no entanto, foi construído de uma maneira bem próxima ao que imaginávamos numa escola freireana. Temas trimestrais, leituras, avaliação participativa, assembleias de classe, iniciação científica, projetos sociais, etc. Um pouco disso se estendeu ao Ensino Fundamental. Havia uma base. Um dos momentos mais marcantes foi a inauguração da Sala do Memorial, por Nita Freire. Mandamos pintar a frase de Freire logo na fachada da escola. Infelizmente esta sala do memorial foi depois desarticulada por falta de conhecimento sobre a importância da memória histórica e boa parte dos documentos despejados num espaço para recicláveis. Alguns também queriam importar um modelo europeu. Eu defendi a permanência de Freire como principal referência. Uma assembleia da cooperativa bateu o martelo em favor de Freire. Anos mais tarde pude comprovar que estava absolutamente certa minha posição, conversando com pessoas certas, em lugar certo. Fui coerente com o que o próprio Freire sempre fez, defender o que a maioria representa, como quando apelou pela oficialização da língua crioula em Guiné-Bissau, contra os 5% de uso da língua portuguesa. O trabalho no colégio, as muitas aprendizagens, fizeram-me pensar um projeto para o doutorado.
O ano era 1998. Eu e meu amigo Jorge Alves de Oliveira fomos cursar disciplinas como ouvintes na Faculdade de Educação da Unicamp. José Luís Sanfelice e Pedro Goergen nos acolheram. Elaborei um projeto a partir das aulas de Goergen, uma aproximação entre a ética universal do ser humano de Freire e a ética do discurso de Habermas. Projeto pronto, inscrevi-me tanto na Unicamp quanto na Faculdade de Educação da USP. Em ambos os casos, acolhido nas primeiras fases. Nas entrevistas, uma grande diferença. Paulo Freire, que viveu a rejeição por parte de muitos colegas da Unicamp, continuava a ser um autor não desejado. Ao menos no Departamento de Filosofia e História da Educação. Um dos membros da banca chegou a dizer isso, com palavras açucaradas, ressaltando a qualidade do meu texto e do projeto, mas… Eram os restolhos de preconceito que tinham ficado, de uma disputa incompreensível, desnecessária.
Na entrevista na Faculdade de Educação da USP estavam Moacir Gadotti, Jean Lauand e Roseli Fischmann, os dois últimos acima de qualquer suspeita de corporativismo freireano. Gadotti, com quem cursei uma disciplina depois, sabidamente um freireano (ou freiriano, sei lá). O fato é que ingressei na USP. Dias depois recebi uma ligação do orientador, professor Antônio Joaquim Severino, que todos sabem que é um gentleman. Ele me perguntou se eu havia aceitado o nome dele como orientador. Vejam só! Severino havia convivido com Paulo Freire e me orientou como orientava a todos, de maneira coletiva, compartilhando as experiências entre os mestrandos e doutorandos.
Minhas dificuldades pessoais foram inúmeras neste processo. Coisas da vida. A qualificação foi um parto. Mas fiz um texto relativamente bom para a defesa. Na banca estavam Balduíno Andreola, um senhor de respeito, de veia freireana, já aposentado; Pedro Goergen; Vânia Gomes (minha ex-professora na graduação) e Moacir Gadotti.
Continuei. Eu era professor do Centro Universitário Assunção em São Paulo, do Centro Universitário Padre Anchieta em Jundiaí e do Colégio Paulo Freire. Minhas alunas do Ensino Médio, alguns membros da comunidade escolar, amigos e parentes lotaram a sala de defesa. Uma pessoa me abordou na porta, antes de tudo começar e perguntou: “quem vai defender?” Deve ser alguém importante porque estão o Severino e o Gadotti.” Eu respondi que não sabia quem era. Severino ficou espantado com o número de ouvintes. Paulo Freire merecia, eu acho.
Continuei no colégio até 2012. Em 2013 ingressei na gestão municipal da Secretaria Municipal de Educação de Jundiaí. Em princípio como Assessor do Secretário, um antigo amigo de infância. E posteriormente, a partir de 2015, na função de Secretário, até o final de 2016. Tudo era novidade, muitas prospecções, muitas possibilidades, em uma Rede de Ensino martelada com o discurso das competências e habilidades havia décadas. Não foi fácil enfrentar os lugares-comuns, tentar desfazer equívocos, implantar novas diretrizes, discutir ideias em processos de formação. Mas mesmo assim, realizamos sem a obrigatoriedade, a fase do Congresso Nacional de Educação na Cidade, elaboramos o primeiro Plano Municipal de Educação Participativo, as Diretrizes Curriculares da Educação Básica a partir do debate coletivo, projetos de lei para um Conselho Municipal e um Fórum Municipal de Educação democráticos.
Nos processos de formação, amplos, realizados de várias maneiras, com várias metodologias, conseguimos contar com a presença de Lisete Arelaro, César Nunes (em várias ocasiões), Marcos Cezar de Freitas (em processo permanente), Miguel Arroyo, José Eustáquio Romão, Antônio Joaquim Severino, Mia Couto, Carmen Sylvia Vidigal Moraes, Carlos Rodrigues Brandão (em duas ocasiões), Maria Clara Di Pierro e tantos e tantas educadores e educadoras de renome. Na Educação de Jovens e Adultos, formamos núcleos descentralizados, reduzimos o analfabetismo em 80% na cidade. Criamos escolas em tempo integral, formamos núcleos específicos para discutir temas da educação importantes, enfim, uma experiência enriquecedora para todos e todas que dela fizeram parte. Nos bastidores, os mesmos problemas que Freire enfrentou em São Paulo.
Infelizmente nosso governo foi vítima de um processo histórico de país que engendrou o que temos hoje. Não tem sido fácil manter posições à esquerda. Perdemos as eleições e tudo voltou à estaca zero.
Me envolvi com um projeto de pós-doutorado, em 2017, e consegui minha aposentadoria como professor do ensino superior privado. César Nunes, meu querido amigo e antigo professor no curso de graduação em Filosofia aceitou ser meu supervisor. Passou a me envolver nas atividades do PAIDEIA – Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação da Faculdade da Educação da Unicamp. Ele me preparou para um estágio internacional, dentro do pós-doc realizado na Unicamp. Fui conversar com Rui Trindade em 2018, na cidade do Porto. Em março de 2019 desembarquei em Portugal para realizar uma parte do estágio pós-doutoral com a cosupervisão de Rui Trindade. Continuei com o velho amigo que li aos 18 anos, Paulo Freire.
Nos três meses em que morei no Porto, pude participar de conferências, ministrar palestras, assistir aulas e seminários. Conheci Alberto Melo, Luís Alcoforado, António Teodoro, Luiza Cortesão. Todos muito acolhedores. Fiquei fascinado com a hipótese de estudar a presença de Paulo Freire naquele país. Entrevistei alguns destes professores e professoras, fiz contato com Licínio Lima, perambulei pelas vielas de Coimbra com meus amigos Ascísio dos Reis Pereira, professor da Universidade Federal de Santa Maria, com a Fabiana, sua esposa. Conheci Gabriel Palafox, da Universidade Federal de Uberlândia e também a um jovem pesquisador francês chamado Pierre Marie, que monitorava um projeto de memória histórica junto à Universidade de Coimbra. Ele me indicou alguns textos, que li com voracidade.
As conversas com Ascísio, com Luís Alcoforado, com António Gomes Ferreira, com António Teodoro, com Luíza Cortesão, com Rui Trindade e Ariana Cosme, meus anfitriões, me levaram a um outro entusiasmo de pesquisa. Voltei para o Brasil em maio. Entreguei meu relatório na Unicamp e já iniciei outro projeto. Fiquei no pé do professor Luís Alcoforado, a quem muito admiro, que gentilmente acolheu minha proposta de novo pós-doc, sobre as relações entre educação e trabalho no pensamento de Paulo Freire, junto ao CEIS-20 (Centro de Estudos Interdisciplinares do Século 20), vinculado à Universidade de Coimbra. Faz algumas semanas que lhe enviei o relatório final. Estou ansioso para saber se o que tanto me motivou, fazer um inventário da presença de Freire em Portugal e dos impactos que suas ideias pedagógicas tiveram ali, sobretudo a partir da valorização do trabalho como elemento cultural inicial da aprendizagem, na dinâmica da educação de adultos, valeu a pena.
Paralelamente, fomos organizando artigos, eventos, participando da coordenação de um Simpósio sobre Paulo Freire no Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra, em 2020, com a coordenação compartilhada com a professora Daniela Ferreira, jovem doutora pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Ainda em 2019, organizei um dossiê intitulado Paulo Freire: vozes do Brasil e de Portugal, publicado na Revista do Programa de Mestrado em Educação da Unisal-Americana. Alberto Melo nos brindou com um generoso artigo, assim como Antônio Joaquim Severino, César Nunes, Marcos Cezar de Freitas e vários outros educadores e educadoras. Este projeto deu forma a um livro que está sendo preparado e será lançado daqui a algumas semanas, com o mesmo título do Dossiê. Deste livro participam António Teodoro, Nuno Fraga, Rui Trindade, Teresa Cunha, Luisa de Pinho Vale, César Nunes, Antônio Joaquim Severino, Marcos Cezar de Freitas, Thiago Rodrigues, Sidnei Ferreira de Vares e Vânia Gomes.
Desde 2019 faço parte do Programa de Pesquisador Colaborador da Faculdade de Educação da Unicamp e atuo junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação (quem diria, não?), na condição acadêmica de professor visitante (2019-2021) e agora como professor colaborador. Tenho participado das atividades do PAIDEIA, nosso grupo de Pesquisas e acompanhado os eventos celebrativos dos 100 anos de Paulo Freire. Participei do Seminário Internacional da UFSCar, organizado pelo querido amigo João Virgílio Tagliavini e demais amigos e amigas. Estarei no evento da UNIFESP organizado pelo querido amigo Luciano Gamez, além de diversos outros eventos que ainda acontecerão em setembro e outubro.
A sensação é muito boa. A cada pessoa que conheço, a cada diálogo, a cada experiência, aumenta em mim a vontade de conhecer Paulo Freire. Ele, que sofreu tantos preconceitos, provindos de diferentes grupos à direita e à esquerda, visivelmente tem sido redimido por essa enormidade de manifestações no dia de hoje e neste ano celebrativo. Não há críticas que se sustentem, apenas as respeitosas, como destaca o professor Sérgio Haddad, que aliás, pelo que sei, faz também aniversário hoje.
Sempre me considerei um pesquisador freireano independente (freireano, leia-se). Nunca me vinculei a nenhuma instituição, grupo freireano de qualquer natureza. Li de quase tudo um pouco e desenvolvi a minha compreensão sobre o que li. Tenho procurado seguir aquilo que Michael Apple aponta em um capítulo de uma obra organizada por António Nóvoa (Paulo Freire: Política e Pedagogia), publicada em Portugal em 1998. Ele diz: “(…) tenho de me distanciar de alguns “freireanos”. Atualmente, existe uma espécie de “indústria” de Freire.”” Ele se refere às tantas reproduções que são feitas, uma repetição sem fim das ideias de Freire. Em parte, necessária, mas que não ajuda a avançar na reinvenção do patrono da educação brasileira. Eu digo mais, há aqueles que se apropriam das ideias de Freire e aqueles que tentam desconstruí-las. Não me interesso por nenhum desses grupos. Sigo ouvindo, lendo, aprendendo, admirando a quem acho que deve ser admirado e analisando criticamente aquilo que é um abuso comercial de Freire. Quanto aos críticos de um certo marxismo ortodoxo, que com desfaçatez o homenageiam hoje, mas nos bastidores o demonizam, creio que falta historicidade em suas análises, algo que o próprio marxismo de certas versões precisa rever. Como sou um marxista não ortodoxo Thompsoniano declarado, penso que a estes falte o sentido da “experiência”, como aponta Edward Thompson na clássica obra “A Miséria da Teoria ou um planetário de erros”. Admiro por demais o professor Dermeval Saviani e sua generosidade tão honesta ao mencionar Freire em “História das Ideias Pedagógicas no Brasil”. Trata-se de um homem de grande estatura intelectual, moral e de natureza amistosa. Já não se pode dizer o mesmo de muitos dos que o acompanham, infelizmente. Não aprenderam com a generosidade e a amorosidade do seu líder. O mesmo se pode dizer destes aos quais se refere, talvez, Michael Apple, que vivem da indústria de Freire, os freireanos (ou freirianos?) ortodoxos e sem abertura para o diálogo, como queria o mestre. Há várias conexões amorosas que foram costuradas entre Saviani, Nita, César Nunes, Alípio Casali, Sérgio Haddad, Cortella, Ana Maria Saul, Lisete e tantos outros diferenciados intelectuais da educação brasileira e internacional. Exemplos não nos faltam. Em Portugal pude constatar o como, mesmo num contexto de predominância de uma pedagogia freinetiana, Paulo Freire é tão venerado e respeitado. Os clássicos como Sthepen Stoer, Sérgio Niza, Rui Grácio, Alberto Melo e tantos outros, em diferentes perspectivas teóricas, são sempre relacionados a Freire. Pouco antes de morrer, Freire havia agendado um encontro com Jurgën Habermas. Infelizmente não aconteceu, devido à morte de Freire.
Sei que minha jornada é apenas a de um humilde professor universitário do setor privado que não se dedicou tanto à pesquisa acadêmica como desejaria. Não estive, neste processo todo, como professor concursado em uma universidade pública. A razão talvez seja justamente esta minha limitação como acadêmico. Sempre fui e gostei de ser um professor de Ensino Médio. Mas naquilo que fiz, Paulo Freire sempre esteve presente, como prática e teoria. Publiquei um livrinho chamado “Paulinho gostava de ler e escrever – Paulo Freire para crianças de todas as idades”. A ideia não é original, mas está conectada ao início deste texto. Minha filha, Manuela, que acabou de completar 10 meses, logo cedo pode olhar para o nosso quintal e sentir tudo aquilo que Paulo Freire amava, além de sua grande esperança no ser humano: os bichos (os nossos cachorros), os pássaros, as árvores (ela adora), as flores, a grama, o sol, o céu límpido, toda a beleza da vida. A Leitura de Mundo dela no início da vida é a mesma de Freire no final e no durante.
Quero um mundo mais freireano para ela. Tomara que consigamos enquanto sociedade ter o mesmo entusiasmo pela vida que Freire tinha, esse mesmo que tem me movido na luta por me manter por aqui, aprendendo a cada segundo, lendo tudo o que posso, compartilhando o pouco que tenho a oferecer, mas sobretudo apaixonado pela pesquisa, a tarefa que hoje tem me mantido vivo.
Obrigado por terem lido até aqui. Não quis apresentar um currículo, mas inserir minha experiência pessoal nesse grande movimento de compartilhamento de alegrias em torno do aniversário dos 100 anos de Paulo Freire. Que vive e nos ajudará a pensar dias melhores.
Excelente reflexão. Eu também gostaria de um mundo mais freireano.
obrigado
Que a Manu, o Théo e as novas gerações possam viver nesse mundo, vamos esperançar!
obrigado
👏👏👏👏👏👏👏👏
obrigado
Que trajetória admirável! Parabéns!