Foi logo ali, em 1962, nas dependências do Hospital São Vicente de Paula, uma e pouco da manhã. Frio à beça. Minha mãe estava desesperada, afinal, primeiro fedelho. Naquela época as irmãs ainda comandavam o hospital, faziam trabalho de parteiras também. Uma delas, a chefona, era osso duro de roer.
Eu já amava os Beatles, porque no mesmo ano em que nasci eles gravaram o primeiro sucesso, “Love Me Do”. Já meus pais eram do tempo do Chico Alves, do Orlando Silva, do Silvio Caldas. Minha mãe guardava poeminhas, uma singeleza cultural de filhos de pobres, que podiam sim, como dizia Paulo Freire, sonhar sonhos possíveis por meio da leitura da palavra.
Mas eu cheguei numa década difícil, muito difícil. Por sorte, nasci dois anos antes, junto com o sucesso dos Beatles, para não ter a marca dos anos que viriam. Entre os sofrimentos normais da classe trabalhadora, mudando de lugar para lugar, minha família se sustentava nas costas do meu pai, um batalhador que não parou um minuto na vida até a morte de minha mãe. Aí ele deu uma estacionada grande. Comprava um terreno, construía uma casa, vendia para poder pagar as dívidas da construção. Foi assim até 1970, até que pelo financiamento do BNH, conseguiu resolver a situação e construir uma casinha modesta onde vive até hoje.
Minha mãe não foi menos batalhadora. Trabalhou com o chicote no lombo, na severidade da minha avó, em casa, empalhando cadeiras de taboa até se empregar na fábrica de tecidos e lá ficar até se casar. Rotina cultural comum para a época. Mas sem dúvida nenhuma ela era o esteio ético e estético da família, o símbolo do cuidado e do zelo. Ambos foram vítimas e ao mesmo tempo resistentes ao período da mocidade que viveram entre os anos 60 e 70. Depois, expressões marcantes do respeito à vida democrática, nunca interferindo em meus desejos pessoais, mesmo que assim o quisessem.
No ambiente de trabalho de meu pai, a antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro, no final dos anos 60, sua amizade com o chefe da seção quase valeu uma prisão pelo DOPS. Ele tinha apenas 29 anos de idade. Aquele líder sindical a quem ele tanto admirava, o iniciou nas leituras sobre Lenin, Che Guevara, Karl Marx e tantos outros “comunistas perigosos”. Seu chefe não teve tanta sorte.
Minha educação escolar foi toda na escola do bairro. Um ambiente contraditório, onde vivíamos felizes, mesmo que alienados. O país estava controlado, os professores eram controlados, alguns com consentimento. Muitos resistiam como podiam. E a gente estava ali, no olho do furacão.
Eu virei jovem e minha adesão ao cristianismo católico me levou a também consolidar uma visão de mundo fechada, intramuros, conservadora, sem consciência da realidade política. Até meus 18 anos foi assim.
Mas a vida tem coisas inacreditáveis. A militância na Pastoral da Juventude proporcionou ler o mundo de diversas maneiras. A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, dentre outras leituras, me fisgou definitivamente para a conscientização possível, como processo contínuo e permanente. Dali em diante não parei um segundo em minhas inquietações políticas. Não perderei jamais a consciência de classe, independentemente de conjunturas e contextos, de opções e decisões.
A ditadura militar foi um golpe duro da democracia. Milhares de pessoas mortas, torturadas, desaparecidas. Estávamos atropelados pelo arbítrio e até certo momento, nem sabíamos disso. Já nas fases posteriores, o contato com personalidades políticas locais, símbolos da resistência, como Antonio Galdino e Erazê Martinho, além das lições e experiências acumuladas pelo meu pai, as aprendizagens que vieram pelo campo progressista da igreja católica, a luta sindical, a militância político-partidária, só fizeram reforçar ainda mais o desejo de lutar por uma sociedade democrática.
Mas a semente da arbitrariedade permaneceu em solo fértil e germinou quando encontrou oportunidade. Hoje vivemos a terrível condição de sermos governados por defensores de um regime cruel. Falam publicamente de suas taras antidemocráticas, como se as doenças políticas, além da COVID-19, fossem males menores. E celebram a ditadura, 56 anos depois do golpe.
Leonardo Boff nos pediu um gesto no dia de hoje, como forma de resistência. O que mais eu poderia fazer além de escrever este pequeno texto? E também lembrar que a história é um processo dialético aberto. Tive milhares de alunos e alunas. Talvez a maioria deles afinados ideologicamente, conscientes de seu papel na sociedade e no mundo. Não é para desprezar esta experiência. Porque eles estão por aí, nos partidos políticos, nas empresas, nas salas de aula, fazendo valer o espírito democrático, a solidariedade, a vida ética. Afinal, nas horas de crise de saúde, de crise política, estes valores sobressaem a tantos desvios morais.
Como dizia o poeta, eu acredito nessa juventude. Acredito naqueles que hoje fazem a diferença na busca solidária de soluções para o problema da pandemia que nos assola. Acredito nos jovens engajados e conscientes. Assim como meu pai despertou para uma consciência política, como eu despertei, também eles, estão aí aos milhares, transmitindo esperança para as gerações futuras, a despeito de golpes, sociopatias, psicopatias, sofrimentos do passado que acometeram muitas famílias. Vamos superar tudo isso. A juventude vencerá por nós, a esperança vencerá.
Meu primo que tanto admiro!
Bárbara sua narrativa!
Quem sofreu ao menos os reflexos da ditadura aprendeu a identificar de longe suas memórias que nos assombram!