Talvez tenha chegado um momento esperado. A hora adequada, que surge do coração.
Eu tinha apenas 9 anos de idade quando, espontaneamente, passei a frequentar a igreja católica. Nunca houve alguma forma de pressão ou influência dos meus pais. A paróquia do bairro era comandada por sacerdote extremamente tradicional, conservador nos costumes, moralista ao extremo, apesar de uma erudição e formação clássicas que se destacavam. Sua capacidade afetiva e de empatia, deixavam a desejar. No entanto, muitos paroquianos o reverenciavam, mesmo diante de seus conhecidos embates com personalidades políticas e com membros do próprio clero.
Este sacerdote foi afastado de suas funções, por razões até hoje misteriosas. Em seu lugar foi nomeado um novo líder religioso, de perfil ameno, acolhedor, próximo das pessoas, avançado nas ideias, sobretudo as litúrgicas. Eu me encontraria com ele mais tarde, em outro momento. Nesta fase eu já havia sido crismado e participava de uma comunidade de adolescentes, comandada por um líder adulto muito carismático, simpatia em pessoa. Já entrando em processo de juventude, alcancei a chance de participar de uma comunidade de jovens, quando boa parte de minhas bases existenciais se firmaram, os valores, além de muitas sólidas amizades, que permanecem até hoje.
Passei a atuar num movimento de jovens da diocese e durante cerca de 5 anos, ampliei o leque de relacionamentos e pude começar a diferenciar a formação rígida, moralista, intramuros, que a igreja oferecia naquele contexto, de uma outra perspectiva, mais aberta, preocupada com questões sociais. A leitura da obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, aos dezoito anos de idade, mudou os rumos de minhas convicções sobre o catolicismo. A evolução foi rápida e em espaço de dois anos já me via na coordenação de uma nova estrutura diocesana, a pastoral da juventude. Os contatos com outras experiências me levaram a integrar a comissão estadual da pastoral da juventude do regional Sul I da CNBB. Ali eu me via situado, um jovem católico abraçando questões sociais.
Entre as cabeçadas e confusões existenciais, acabei ingressando no seminário diocesano. Ali reencontrei aquele sacerdote que substituíra o mais antigo e conservador na minha paróquia. Ele era o vice-reitor. Mas uma prescrição quase absolutizadora da necessidade de participar de um movimento espiritual específico custava-me o estômago, justamente porque a visão mais progressista já me tomava a alma.
Evidentemente não permaneci ali. Fui ser educador. A conversa ríspida com o bispo diocesano selava meu destino, que ele próprio previu. Sim, fui acolhido pela educação. Essa felicidade foi a maior de minha vida. Estou neste solo nos últimos 31 anos, além de outros 11 trabalhando em empresas privadas. Mas não posso deixar de registrar minha gratidão e respeito aos inúmeros formadores que, no movimento de jovens, na pastoral da juventude e no seminário diocesano, me ajudaram a ser o que sou.
Durante meu mestrado, fiz um trabalho crítico sobre aquele movimento da juventude, que resultou em um livro publicado posteriormente. Eu continuava, paralelamente à minha vida profissional, “professando” o catolicismo. Mas à distância. Em 2000 me envolvi em uma das maiores polêmicas da minha vida, uma contenda pública com um bispo, que quase me rendeu um processo legal. Dizer a verdade nem sempre significa justiça. Ali rompi com a igreja católica.
Casei-me na igreja católica antes disso e esta experiência amargou posteriormente, quando contra a minha vontade fui submetido a um divórcio. Foram dois anos revisitando minha alma, até a entrada com um pedido de nulidade matrimonial, que a igreja de Wojtyla me negou. Eram anos terríveis. Uma grande decepção. Não entendia aquela situação. Ao mesmo tempo, queria continuar acreditando, considerando que a igreja não é um bloco homogêneo. Nesta época, trabalhei numa das mais importantes instituições católicas de ensino superior, na cidade de São Paulo, com muito orgulho, quando esta experiência me ajudou na recuperação emocional e fiz grandes amigos.
Distanciei-me da estrutura, mas conservei minhas crenças mais profundas. Escrevi um livro sobre a transcendência, imaginando-a na imanência, com base nas ideias de Teilhard de Chardin. E a vida prosseguiu.
Em um dado momento, me vi envolvido novamente com questões da doutrina moral da igreja. Eu era secretário de educação no contexto da aprovação do Plano Municipal de Educação. Pressões vindas do conservadorismo católico e evangélico tomaram conta do país neste momento da aprovação dos planos. As câmaras municipais eram tomadas por essa gente da “minha ex-igreja”, enfurecida por conta da questão de gênero, confundindo, num ciclo de irracionalismo que se alastra até hoje, conceitos fundamentais que, deturpados, passaram a formar o que eles chamam até hoje de “ideologia de gênero”. Fui lá, de boa fé, conversar como sempre fiz, freirianamente, com quem de direito. Fui ouvido e a impressão foi boa. Pensei até em reabrir aquele meu processo de nulidade, num lapso de recaída à institucionalidade que me surgiu. Respeitei ali, profundamente, aquelas pessoas que me atenderam, tão certas de suas posições.
Alguns entenderam que fui conversar para acertar a retirada da questão de gênero do Plano Municipal de Educação. Ela foi feita, mas por outras razões, que não cabe agora discutir neste texto. Ficará para um momento oportuno, porque na vida existe tempo para tudo. Mas a decepção, novamente, veio a me atormentar o espírito, quando tomei ciência de uma carta, assinada por pessoas da oficialidade católica, contra todo o diálogo que já havia feito, imaginando que tais pessoas seriam ponderadas. Ledo engano. A carta, dirigida à câmara dos vereadores, pedia a substituição do termo “género” por “sexo”, no plano municipal, uma redução da existência humana ao corpo, ao biológico. Naquele momento, perplexo, desisti novamente de reconsiderar minhas posições com a igreja católica, fortemente abaladas desde que rompi com a instituição em 2000.
E veio o contexto do avanço conservador no Brasil, com o fascínio da extrema direita por posições complementares, ultraconservadoras, endossadas por pessoas e grupos ligados à igreja. Ao mesmo tempo, o Papa Francisco, dando sinais de avanços e retomadas no discurso da doutrina social da igreja e de uma visão moral mais aberta, ajudava-nos a manter viva a esperança de um cristianismo católico novamente situado historicamente. Sem ingenuidades, porque certamente as questões morais continuam com as mesmas orientações, mantendo confusões como essa tal “ideologia de gênero”.
Tudo isso para dizer que, me mantenho na perspectiva de um cristianismo aberto, não institucional, livre das amarras que o oprimem e reduzem, mesmo olhando em volta e vendo tanta gente idiotizada por discursos pobres e simplistas, pessoas que provavelmente nunca assumiram o compromisso da leitura de uma obra teológica, de um documento social da igreja, de uma obra crítica respeitosa contra suas posições. Tomados pelos irracionalismos, essas pessoas e grupos vivem de atacar quem não se enquadra nos seus clubinhos religiosos, colocando-se na posição de tudo saber, mesmo vivendo sob o véu da ignorância. Neste rol de idiotizados se encontram, inclusive, “representantes do povo”. Eles atacam porque não conhecem, invejam porque a ilibação moral não é figura de retórica contrária – normalmente calúnias e ofensas -, mas faz-se no reconhecimento cotidiano que os parceiros de caminhada testemunham. São os fariseus dos sepulcros caiados, denunciados por Jesus, hipócritas por natureza, pequenos na estrutura espiritual, vendilhões do templo a se associar com os comerciantes da destruição de direitos.
Há tempos queria me manifestar desta maneira. Chegou a hora. Mais que um desabafo, penso na possibilidade de uma reflexão profunda, a partir da minha prática e da minha história, acreditando que com alguns é possível aproximações. Já com outros, que constantemente abrem mão de fundamentos sólidos, não consigo mais conversar. Não consigo mais tolerar pessoas que, no cotidiano e nas relações virtuais, tentam pela via da ignorância desmontar discursos mais complexos, com comportamentos de baixo nível. E me pergunto o que é ser cristão nos dias de hoje. Sei de muitas pessoas que vivem como cristãos. Têm dificuldades para falar dos outros, para julgar. São acolhedores e não nutrem preconceitos. Não se deixam levar por doutrinas questionáveis e, como bons samaritanos, vão fazendo jus ao evangelho, contra toda ortodoxia, contra toda liturgia vazia, contra todas as desaproximações, contra todas as injustiças, contra todos os formalismos, contra tudo o que podemos classificar como anticristão.
Sou, para ficar bem claro, pelos direitos de todos os excluídos, como já apontava Paulo Freire a partir de Franz Fanon. Sou e estou do lado das comunidades LGBTQ+, dos movimentos sociais de luta e resistência, das populações indígenas, das crianças vítimas de violência, dos negros historicamente excluídos de direitos sociais, dos trabalhadores, das mulheres, dos idosos, dos deficientes, dos moradores de rua, das prostitutas. Porque afinal, como disse Jesus, “as prostitutas e publicanos vos precederão no reino dos céus”. Continuarei um aficionado pela figura de Jesus e caminhando em direção a uma transcendência que imagino pura imanência. Amém.
Muito bom o texto Renato, coeso e coerente como sempre vi em você em quase três décadas de convivência, obrigado por poder ler seus textos, abraço mano.