A constituição federal de 1988 expressou em grande medida, um anseio pela consolidação do Estado Democrático de Direito, em que as garantias fundamentais para a vida cidadã e para os direitos humanos fossem contempladas. Infelizmente, mesmo com evoluções positivas em momentos específicos, a maioria das políticas públicas no campo social não levaram a efetivação destas garantias.
Na educação, por exemplo, a partir dos anos 90, venceu uma versão tecnicista e reducionista sobre o que é educar e o que é administrar o trabalho educativo. Com muito custo, a partir da década de 2000, alguns avanços foram propostos, não sem a ampla participação de setores comprometidos da sociedade. As lutas pela educação pública já vinham, desde os anos 80, logrando algumas conquistas importantes, mas o retrocesso dos anos 90 se constituiu como uma grande derrota para a ampliação dos horizontes de uma educação como direito.
No âmbito das cidades, os impactos foram enormes, na medida em que o receituário do Estado mínimo, que foi imposto nos anos 90, surtiu efeitos não apenas na gestão, mas nas concepções que orientaram as políticas e que em derivação afetaram a gestão. Uma espécie de polarização entre uma social-democracia subserviente ao neoliberalismo por um lado e um nacionalismo de feições populares, por outro, caracterizou o embate de posições durante os anos 90 até 2016. Era a luta pelo direito em um campo político, contra a ideia da flexibilização de direitos no outro campo.
A partir de 2016, como já apontaram vários analistas, as relações de poder sofreram profundas modificações. Embalados pelo clima de animosidade instaurado no período anterior, os grupos supostamente mais moderados ao centro, abriram campo para o afloramento de posições extremas à direita. A união de social-democratas e da direita raivosa criou o clima no qual estamos inseridos hoje. Não que o campo nacionalista-popular não tivesse lições de casa a fazer. Muitas. Mas o jogo de poder contra ideias progressistas foi pesado, levando até mesmo à criminalização – em grande medida questionável – de representantes deste campo.
E estamos agora metidos em uma grande confusão. Temos uma direita totalmente amorfa em termos de referenciais sólidos para a governabilidade, aliás, até mesmo agindo fora do princípio constitucional do Estado Democrático de Direito, com medidas visivelmente autoritárias sustentadas até mesmo por parte da institucionalidade jurídica – também sofrendo as contradições ideológicas que um crescimento da direita proporcionou. A imparcialidade não se sustenta num mundo jurídico e das ciências em geral, em que a neutralidade científica é obviamente uma falácia.
E a ingenuidade política, num quadro tão adverso como esse, não pode ofuscar a nossa racionalidade. Há muita dificuldade no momento para que as forças democráticas progressistas acordem do sono profundo ao qual foram submetidas a partir do fim da polarização anterior. Como se todos estivessem assustados, como medo de que as identificações fakeianas produzidas pela direita fossem atribuídas a esmo no processo eleitoral, guardaram-se, para “se protegerem” de ataques e acusações, de certa maneira assumindo o medo de afirmar a própria identidade. Em parte, uma estratégia, mas em grande medida um erro enorme. Unidade virou palavra de luxo, no horizonte utópico de uma luta contra o reacionarismo.
E assim chegamos ao universo da cidade. Nos grandes centros, haverá disputas entre candidatos do campo progressista à esquerda, de progressistas de centro-esquerda, de grupos de centro-direita, de direita e de extrema-direita. Lembrando que nem sempre as legendas seguem a orientação das posições nacionais no município.
As identificações com alguma destas posições, durante o processo eleitoral, se dará com base em vários fatores: as pautas defendidas (para os eleitores mais definidos ideologicamente), a irracionalidade que se movimenta pelas redes sociais, as incompreensões sobre o que cada grupo representa, além de boa dose de desinteresse – alimentado, é claro, por inúmeros fatores.
Sobre as pautas em jogo, as posições de centro-direita, direita e extrema-direita continuarão se movimentando em torno dos contorcionismos morais em defesas inexplicáveis de conservadorismos que a maioria da sociedade já não mais aceita. Serão ainda extremamente preconceituosas e moralistas. Além disso, virão com as mesmas características que as definiram ao longo das últimas décadas no que se refere à defesa de direitos e gestão administrativa: enxugamento da gestão e discurso da eficiência da máquina, embalados ao sabor de uma suposta modernização dos serviços públicos.
As posições progressistas, à esquerda e ao centro-esquerda, se manterão na defesa de direitos inalienáveis, com variações e intensidades que são próprias de cada legenda. Mas as pautas em favor dos direitos da comunidade LGBTQ+, dos negros, das pessoas com deficiência, das mulheres, das crianças, dos indígenas, contra todo o tipo de preconceito, permanecerão fortes. Além disso, a defesa do Estado, de seu papel como agente regulador das políticas sociais, de uma gestão democrático-participativa não pautada apenas pela ideia de eficiência técnica e, por fim, de um desenvolvimento socioambiental como base da justiça social.
Apesar da força do conservadorismo dos últimos tempos e, sem ingenuidade, podemos acreditar, ainda, na percepção de que fatias da sociedade bastante expressivas se conscientizaram nos últimos dois anos, de que estamos totalmente à deriva no que se refere à condução da político-económica do país, de que os grupos que sustentaram a eleição do atual governo, velada ou diretamente, sofrerão impactos eleitorais. Que o discurso fraco que responsabiliza antecessores não logrará tantos êxitos, apesar de ser ainda uma constante.
Ainda há a possibilidade de que, em eventuais situações de segundo turno, em muitas localidades, as evidenciadas diferenças entre os dois campos maiores (centro-direita e direta X centro-esquerda e esquerda) levem a mudanças nos quadros atuais. Lideranças consolidadas, que em momentos anteriores talvez tenham se sentido acuadas pelas condições objetivas e que tomaram decisões mais pragmáticas, podem ressurgir com força e ajudar a mudar o jogo.
Mas, não recaindo no cultivo à ingenuidade, devemos ter em mente que a destruição das políticas sociais dos últimos anos, o acolhimento de um discurso vago sobre moralização da política (que segue a lógica do jogo político e não da moralidade em si) por parte setores do eleitorado, a unidade dos representantes de grupos poderosos economicamente e governantes sem princípios sólidos, as deturpações ideológicas patrocinadas por grupos reacionários e até mesmo criminosos em redes sociais e na mídia “alternativa”, são expressões do jogo pesado que permeará a próxima campanha. Soma-se a isso, por fim, os impactos proporcionados pela pandemia do COVID-19. Será uma eleição rápida e sem muita comunicação direta com o eleitor.
Só teremos clareza do que nos aguarda em algumas semanas. Não há dúvidas de que estamos numa situação que nos obriga a escolher entre a civilidade e a barbárie. Teremos que torcer muito para que vença a civilidade, que os direitos sobrepujem a sua destruição e que a direita não esclarecida tenha diminuído seu poder de persuasão.
*Foto da Agência Brasil de Notícias.