Uma cidade nunca é o resultado de uma marca específica. Terra da Uva? Terra de Italianos? Cidade das Crianças? Slogans forjados por interesses políticos e em grande medida, de classe. A própria narrativa sobre as origens da cidade está carregada de preconceitos, equívocos interpretativos, intencionalidades, para encobrir ou silenciar aquilo que não é desejado. Uma cidade nunca é fundada por duas pessoas. Essas pessoas nem estavam aqui antes dos que já estavam, as comunidades indígenas.
A história oficial credita a personalidades selecionadas a dedo, os louros por feitos que não são expressão do interesse coletivo. Rafael de Oliveira? Qual deles? Petronilha Antunes, que nunca esteve em Jundiaí? O que interessa quem “fundou” a cidade e quando? Ou melhor, para quem interessa essa narrativa?
Recentemente, depois de muito desejo, organizamos um livro (A cidade silenciada – uma Jundiaí vista de baixo), reunindo textos de vários estudiosos da cidade, na busca de fazer emergir os silenciados: mulheres, negros, indígenas, trabalhadores, bairros afastados. Talvez a primeira tentativa de ressignificar o que é dado como certo. Nesta obra questionamos, mesmo reconhecendo os esforços de antigos memorialistas, esse dizer já bem batido, de que há que se comemorar um marco determinado pelos colonizadores, a fundação da Vila.
As características da colonização brasileira, como se sabe, nada tiveram de humanismo, de civilidade, de intenção cidadã. O que comemoramos como grande feito é na verdade uma usurpação. Nem mesmo um casal, que nunca foi um casal (Rafael de Oliveira não tinha relações com Petronilha Antunes), pode ser considerado o único a ocupar um trecho territorial dessa usurpação. Foram várias famílias de descendentes de portugueses, como já comprovaram os documentos, que juntas fizeram jus ao seu “direito” de lotear o que hoje é o centro da cidade. O beneplácito religioso ajudava a legitimar esta usurpação: que se instale uma igreja e a partir deste ato se considere a existência de uma Vila. E o que importa em qual data foi? 1639, 1651, 1655, enfim? Nada deste determinismo histórico ajuda a compreender o todo. Por que não permite responder o que interessa: o que é uma cidade? Quem a faz acontecer?
Praticamente todos os documentos “históricos” transcritos sem análise profunda pelos memorialistas são registros de atos administrativos e políticos. Menção a grupos sociais e éticos de “menor valor”, só quando a lógica é a do colonizador: escravização, pelourinho, punições, perseguições. E nos séculos seguintes essa lógica permanece com os trabalhadores e trabalhadoras. Nada da vida concreta desses grupos, seu fazer cotidiano, seus sentimentos em relação à cidade, ao trabalho, à sua escravização, aos seus direitos de cidadania.
O mesmo prisma do esquecimento se reflete, no transcurso do século 20, nos desdobramentos da inserção do país no mecanismo da dependência econômica do capitalismo industrial. Casas para operários, bairros afastados para os trabalhadores, escolas para os pobres (antes ela era “para todos”, os chamados grupos escolares), melhorias apenas nos bairros centrais da cidade. Até que o capitalismo engoliu a cidade inteira. A periferia aos poucos vai adquirindo valor imobiliário, as áreas de preservação ambiental vão sendo invadidas, os interesses políticos mesquinhos de grupos econômicos em articulação capitaneiam processos eleitorais, vendendo a ilusão de que somos uma cidade da harmonia e do acolhimento. Por certo, muitos imigrantes foram acolhidos, alguns poucos foram bem-sucedidos. E são justamente estes que são tomados como modelos, numa lida discursiva conservadora que reúne dizeres articulados: famílias de bem, tradições religiosas específicas, símbolos deterministas (a uva) e por aí vai. 40% dos italianos que vieram para o Brasil entre 1870 e 1900 não tiveram escolha: voltaram para a Itália. Os que ficaram, disputavam espaço com os recém-escravizados libertos, numa dinâmica própria do capitalismo: promover oposição entre os que ele explora.
Alguns descendentes de portugueses se colocam em cena, para reivindicar que são “descendentes legítimos” dos mesmos usurpadores que antes eram glorificados como benfeitores. Aqueles que ao se verem desvalidos pelo fim do império, articularam políticas de branqueamento da sociedade brasileira, escondendo debaixo do tapete a infâmia da escravidão que antes defendiam. Símbolos da africanidade são demolidos, danificados, sem o menor constrangimento por parte dos “donos da cidade”.
E assim chegamos a esses 367 (ou mais) anos reproduzindo as mesmas dinâmicas: denegando os bons feitos de outros grupos, sugerindo que os que de fato fizeram mal à cidade é que fizeram bem (supostamente trouxeram mais recursos, o que não corresponde à verdade porque recursos deixados antes foram abandonados), enaltecendo símbolos nada consensuais, ressignificando espaços de luta operária como “espaços da cultura”, abandonando por quase uma década os espaços de cuidado (na saúde, especialmente) (e da cultura também, diga-se de passagem, especialmente monumentos recuperados anteriormente, como a Ponte Torta e o Centro das Artes), para agora, somente agora, no encerrar do espetáculo, apresentar os novos atores desse jogo contínuo, poucas vezes truncado por juízes imparciais, de que quem manda aqui é o poder econômico.
É difícil comemorar esse cenário. A não ser que tomemos como referência uma outra leitura. Que “apesar de você, amanhã há de ser, outro dia”. Aquela certeza que os historiadores do campo da historiografia social possuem: nada é absoluto, nem as leituras impostas. Há uma empiria inegável, científica, no trabalho dos historiadores comprometidos, que mesmo diante de uma metodologia não absolutizada, sugere que há atores, numa “história vista de baixo”, que agora entram em cena. Inevitavelmente. Nos novos livros, nos avanços e lutas no campo da defesa dos direitos humanos fundamentais, nas resistências várias que continuam, nas apropriações indébitas que as próprias elites fazem do discurso cidadão em favor “dos de baixo”: agora somos povão! Vamos subir o morro para ver a realidade que ficamos anos sem observar. Vamos sambar os sambas antes não sambados, vamos visitar os lugares antes não visitados. E a carruagem anda.
Na minha perspectiva como cidadão e historiador, será essa história “marginal” que vingará no horizonte da emancipação. E ela relegará ao esquecimento, como já tem ajudado a relegar, os que dilapidaram o sentido da diversidade na construção da cidade. Grupos culturais pendurados nas benesses do poder público, grupos empresariais financiadores da destruição do patrimônio ambiental, grupos religiosos mancomunados com a reprodução de um conservadorismo moralista (para disfarçar os efeitos abusivos do poder econômico) contra mulheres, pessoas com deficiência, jovens, negros, membros das comunidades LGBTQIA+ e tantas barbaridades que levaram a cidade a aderir, muito recentemente, (80% dos votos), ao negacionismo, ao clima de ignorância e intolerância raivosa que ajudou o país a afundar nos princípios democráticos. É essa cidade e esse tipo de cidadãos que precisamos?
Ou será uma cidade efetivamente fraterna, respeitadora das diferenças, conservadora (no bom sentido) das diversas e importantes contribuições (diria até das sustentações) culturais dos indígenas, negros, mulheres, trabalhadores? Oxalá possamos nos preocupar menos em comemorar datas fictícias e pensar um Brasil e uma cidade que já existiam desde sempre, que eram preservados e viviam em harmonia antes mesmo de ser Brasil. Oxalá possamos reverter os processos de formação no seio deste modelo de escola caduca que temos, para que mais humanização ocorra, mais evolução na cultura política, mais cidadania e consciência de igualdade de direitos. Oxalá prevaleça o interesse público, que a mobilização social e popular seja respeitada, os mecanismos de participação sejam alargados, para que a cidade seja ouvida de fato. Que tenhamos menos barreiras arquitetônicas para impedir a manifestação do diferente. Que nos manifestemos com responsabilidade, sem mentiras e dentro da lei.
Alguns hoje falam em equidade. Sim, equidade. Mas há uma razão ético-política no horizonte a perseguir: a igualdade plena, no espírito do respeito às diferenças. Essa é a cidade que eu sonho, que desejo para minha filha, que desejo para todos e todas os/as jundiaienses. Menos subserviente à “ordem dos fatos”, mais promotora de cultura como identidade cultural (e não somente como manifestação artística), mais acolhedora de fato. Uma cidade em que em todos os cantos prevaleça a dignidade humana, a preservação dos ricos recursos naturais que ainda temos. Quando jovem eu escrevi uma canção, que concorreu em vários festivais de MPB. Ela diz assim:
Nossa serra, nosso fruto, nossa gente
Tão singela a presença do amor
Nossa terra, o orvalho numa flor
Que reflete o prazer que a gente vê
A esperança que nós temos em você
Os teus ventos nós sentimos afastar
A tristeza, a solidão e todo pranto
Simplesmente vão fazendo levedar
Dentro, em nós, o teu consolo
Nosso canto
Se em teus rios eu pudesse navegar
Para levar o teu semblante a toda a gente
Certamente haveria um lugar
Pra mostrar todo o prazer que a gente sente
Em nascer, viver e até morrer aqui
Nossa terra, ó querida Jundiaí
Uma Jundiaí plural, igualitária, solidária, respeitadora de todas as gentes. Sem ódios, sem donos, uma Jundiaí em comunhão fraterna.