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VOLTA ÀS AULAS PRESENCIAIS, QUE TEMPOS SÃO ESSES?

Recebi com alegria esta contribuição do meu amigo, professor Márcio Cenati, que discute com muita propriedade a ideia do retorno às aulas em Outubro. Apropriando-se de uma lógica fundada no princípio ético do respeito à vida, Cenati argumenta contrariamente a este retorno, acompanhando as indicações da maioria dos educadores, de que este retorno só pode se dar quando as condições de garantias à vida sejam plenas.

(José Renato Polli)

 

“Que tempos são esses em que temos que defender o óbvio?”. A conhecida pergunta atribuída ao dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956) não poderia ser mais atual. O retorno presencial às escolas públicas do Estado de São Paulo em outubro, me fez lembrar das aulas de ética do professor Francisco nas salas da Puccamp central, o antigo solar do Barão de Itapura, em meados da década de 1990, na cidade de Campinas. O professor Francisco dizia que um princípio fundamental da ética é “não posso fazer um mal, para que desse mal resulte um bem”.

Todo dia, na hora do almoço, ocorre em um canal cultural da TV aberta uma “tortura com os números”. Argumentos matemáticos são usados para nos fazer acreditar que a pandemia está sob controle e poderemos voltar às aulas presenciais quando outubro chegar. Outro argumento utilizado é que as crianças e jovens estão com problemas socioemocionais em decorrência do distanciamento social e, portanto, se faz necessário voltar às aulas presenciais, ainda que de forma lenta e gradual, para amenizar tal problema. A “cereja do bolo” argumentativo estatal é o denominado protocolo. Sim, as escolas seguirão o protocolo: termômetro, álcool gel, máscaras e distanciamento social.

Quanto ao argumento dos números, sabemos que papel aceita tudo, e o que está no papel são os “números oficiais”. Podemos confiar em “números oficiais?”. Há mais subnotificações entre a realidade e os “números oficiais” que podem explicar a nossa vã estatística “torturadora dos números”.

O argumento sobre os problemas socioemocionais pelos quais crianças e jovens estão passando é o mais inconsistente. É verdade que a educação não é construída apenas de atividades frias, de resultados, de boas “habilidades e competências”, como preconiza a equivocada “pedagogia das competências”. Sim, a educação também pressupõe o contato social. A educação deve ser um processo de humanização, o contato com o outro me humaniza. Porém, o bem maior de cada pessoa é a vida. É preciso preservá-la para que depois possamos resolver os problemas socioemocionais também através da socialização. É necessário estar vivo para que as relações sociais possam acontecer. Volto às aulas de ética do professor Francisco “não posso fazer um mal para que desse mal resulte um bem”, isto é, não posso arriscar o bem precioso maior que é a vida, para obter uma melhora na qualidade socioemocional de alguém, ainda mais se esse alguém é vulnerável e não tem ainda condições de compreender totalmente o que está acontecendo. Boa parte dos responsáveis pelas crianças e jovens, por diferentes razões, ainda não se apropriaram do pensamento crítico necessário para questionar os interesses que estão além dos “números oficiais”, por isso, é preciso descartar a volta presencial às aulas nesse ano letivo. Sem uma vacina eficaz e sem a imunização da população, mais vidas serão ceifadas e para quê?

Por fim, e não menos incoerente estão os chamados protocolos. Você já visitou uma escola estadual pública da periferia? Você acredita que todas as escolas terão os materiais e funcionários necessários para os protocolos, se há anos faltam giz, papel higiênico e materiais de limpeza? Você sabe como as crianças e os jovens se comportam durante a “hora da merenda”? Eles querem se encontrar, se abraçar, se cumprimentar, o toque físico para eles é importante. Veja a incoerência do argumento que diz querer melhorar a situação socioemocional dos estudantes! Eles vão à escola, mas não podem se aproximar um do outro, têm que manter a distância, têm que usar máscara e ficarem sem contato físico devido ao protocolo. Isso é cruel com as crianças e jovens e, portanto, parece não contribuir muito para a melhora socioemocional. Ora, se a socialização está prejudicada pelos protocolos, o risco de aumento de contágio justificaria a volta presencial às escolas? Que lógica é essa? Já há evidências demonstrando que à volta às aulas aumenta o contágio, basta ver os casos da cidade de Manaus e Rio de Janeiro.

As populações periféricas que residem nos bairros pobres são as mais vulneráveis e, portanto, prejudicadas pela falta de recursos protocolares nas escolas, isso certamente impõe um maior risco de morte às “vidas periféricas” e essas vidas também importam. Cada vida é importante, uma vida é importante, toda vida importa. Essa insistência de volta às aulas presenciais sem lógica, sem argumento e que despreza a vida humana, nos permite dividir esse debate em duas categorias: os que não querem a volta às aulas e os que nunca pisaram em uma escola da periferia.

Que tempos são esses em que uma narrativa repetitiva e a oratória rebuscada, mas sem consistência, substituem os argumentos bem fundamentados e plausíveis? Que tempos são esses em que temos que defender o óbvio?

Márcio José Cenati, professor da rede pública estadual de ensino. Graduado em Filosofia pela PUC-Campinas e mestre em Linguística pela Unicamp.

Sobre José Renato Polli

Editor responsável

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