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UMA PROFESSORA SUBLIME

Meu querido amigo e mestre, professor César Nunes, sempre se refere a uma frase de Isaac Newton, escrita em uma carta para Robert Hooke, em 1676, e que se baseia numa metáfora atribuída ao filósofo platônico do século XII, Bernardo de Chartres: “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes.”

Newton associava a modéstia e a gratidão, valores que geralmente poucos nutrem. Vivemos sob a égide da suposta “aptidão inata” ao sucesso e o que deveria ser considerado um processo contínuo e sinuoso, a construção do conhecimento, aparece aos olhos de alguns como “nada tenho a agradecer a ninguém porque eu já sei tudo”. Ignoram o dístico socrático de que o saber consiste em nada saber.

Eu tenho  nutrido esta gratidão aos meus professores e professoras. Não obstante as diferenças ideológicas, didáticas, teóricas, creio que o valor maior, presente na relação professor/a-aluno/a é o respeito e o amor. Tenho uma lista com os nomes de todos/as os/as meus/minhas professores/as, desde o primeiro ano primário. Se vivo da prática docente hoje é porque subi nos ombros desses e dessas gigantes para ver mais longe. Nem sempre é assim. Por vezes os professores e professoras são esquecidos com facilidade, são subtraídos muito rapidamente da memória de seus/suas alunos/as.

Em 1973 eu iniciava a segunda etapa da minha vida escolar. Minha família se mudou do bairro do Vianelo, em 1970, onde nasci e fiz o primeiro ano primário no antigo Sesi da Vigorelli, para a região da Vila Rio Branco. Lá estava eu, um garoto pré-adolescente, no alto de seus 11 anos de idade, superando a fase anterior em que uma só professora convivia conosco, no antigo grupo escolar, e agora tinha de conviver com outros 9, 10, professores e professoras, cada um em sua área de conhecimento. O ginásio parecia uma vitória para filhos de operários, pois os seus pais, pela condição de classe, no máximo terminavam o antigo primário.

Foi a partir da arbitrariedade da lei 5692/71 que a escola pública brasileira assumiu a feição pedagógica tecnicista, copiada do modelo americano, para atender ao discurso que se propagava, com base na Teoria do Capital Humano, de que a sociedade brasileira precisava formar mão de obra qualificada para o mercado de trabalho. A formação humana foi negligenciada em cortes curriculares absurdos e inculcamentos de ideologistas ufanistas. Os professores e professoras não tinham muita opção, porque eram exigidos a cumprir o que estava no script do regime. Ministrar os conteúdos de forma a tomar o devido cuidado com o que e como dizer. Os dirigentes escolares não escapavam também ao clima autoritário, alguns apoiando-o e outros se adaptando como podiam.

 Os governos militares pretendiam tudo controlar, mas havia brechas, formas de escape.  Ninguém controla sorrisos, gestos amorosos, o bom humor, o agraciamento com presentes, o carinho, a sonoridade da voz dos mestres e mestras – que entra pelos nossos ouvidos. Ninguém controla cheiros, a sinestesia dos corpos.

Felizmente eu fui aluno de uma geração de educadores e educadoras que atuaram em Jundiaí, no Ginásio Estadual Professor Adoniro Ladeira, no bairro da Vila Rio Branco.  Essa escola depois foi para outro bairro e ali o grupo escolar Cecília Rollemberg Porto Guelli passou a nominar também o ginásio. Posso assegurar com certeza, que aqueles professores e professoras não eram para qualquer um. Sorte a nossa, termos como guias no conhecimento pessoas singulares. Alguns deles/delas eu já homenageei. Outros/as se tornaram meus colegas de profissão, décadas depois. Alguns/algumas já evoluíram para outro plano. Olhando para trás, creio que esta experiência de convívio com estes/estas mestres e mestras foi uma glória para mim e para os meus colegas. Nem todos/as ficaram no coração, para o bem da verdade, porque alguns assumiam a feição autoritária, o clima do período, não permitindo intimidades ou afetos. Mas não os/as esqueci ou desmereço sua contribuição para a minha formação.

Na área de literatura, tive vários/as bons/boas professores/as, mas três em especial me sensibilizaram mais profundamente. Da época do ginásio foram duas professoras. Uma, a sempre tão doce Célia Bernardi Politi. No Ensino Médio, o querido Claúdio Tafarello. No entanto, antes deles houve alguém especial. Muito especial. Esta que não foi mencionada ainda.

Há um poema lírico, uma obra do arcadismo luso-brasileiro, escrita por Tomás Antônio Gonzaga, publicada em Lisboa em 1792. Nela o poeta, sabidamente um dos integrantes do movimento da Inconfidência Mineira, assume no personagem-narrador, Dirceu, a condição de um alter-ego. Falando sobre si mesmo, narra seu amor além da alma por uma donzela, Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, no contexto em que ele era o Ouvidor Geral na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais.

Como se sabe, o arcadismo tem como características o romantismo, o bucolismo, o pastoralismo, a íntima relação com a simplicidade e os elementos da natureza. E Maria Doroteia, na obra em questão, assume o nome de Marília. O amor de Dirceu por sua Marília, dois pastores a guiar seus rebanhos, remete a estas características do estilo literário da época. E também aos sentimentos que me movem neste momento, de um amor filial e de grande respeito por uma Marília. É como se esse amor nunca tivesse acabado, como nessa trama romântica idealizadora. Sim, adolescentes idealizam seus professores e professoras, mas neste caso foi pura admiração.

Este nome, Marília, é uma derivação de Maria, que por sua vez advém do hebraico Myriám, que dentre outros significados, quer dizer “sublime”. O que se pode dizer sobre o que significa ser uma pessoa sublime? Creio que seja algo que não podemos classificar em plenitude. Talvez uma perfeição moral e intelectual. Mas que há pessoas sublimes há. E não é necessário ter convivido com elas durante muito tempo para perceber.

Naquele 1973, estando na quinta série do ginásio, aos 11 anos, recebi das mãos de uma Marília, um livro da literatura brasileira, com uma dedicatória escrita por ela. Fui presenteado porque, paradoxalmente, escolheram-me dentre todos os colegas da escola como “aluno-símbolo”. Ser um aluno símbolo naquela ocasião, olhando hoje, nada mais era do que ser identificado como “um aluno ajustado” aos comportamentos tidos como desejáveis. Mas não me senti menos privilegiado por isso. Guardo até hoje este exemplar de “O Burrico Lúcio”, de Léo Vaz, que a professora Marília Buso entregou-me com as suas tão finas mãos. Não há na minha trajetória de vida um livro que eu guarde com tanto esmero. Ela foi minha primeira professora de língua portuguesa e que me iniciou na literatura. Naquela ocasião ela estava no auge dos seus 30 anos. Lecionou esta disciplina para a minha turma na quinta e na sexta série do ginásio.

Sempre fui muito tímido. Sempre lutei contra a timidez. E foi a timidez que me impediu (e hoje me arrependo amargamente) de me aproximar dela numa ocasião em que a vi caminhando com sua mãe pelo Cemitério Nossa Senhora do Desterro. Deveria ter me aproximado, agradecido, trocado algumas palavras. Mesmo assim, sempre a guardei no coração. Aquela voz grave e ao mesmo tempo suave nunca será esquecida. Aquele rosto lindo e aqueles lábios dispostos a sorrir permanentemente foram parte do que escapava aos controles da ditadura militar.

Das aulas propriamente eu me lembro pouco. Sei, por condição de ofício, que a língua portuguesa era ensinada de forma técnica. Análises sintáticas, simples ou complexas, nunca foram o meu forte. Mas algo precisa ser dito. Os nossos/as professores/as vinham de uma formação clássica, necessária, esta mesma que é denegada hoje aos/as professores/as e alunos/as da escola pública brasileira, na repetição sempre piorada de um discurso pedagogicamente pobre sobre a necessidade de “formar mão de obra para o mercado de trabalho” em reformas e mais reformas. O direito à cultura desenvolvida ao longo da humanidade, salutar para a formação para a cidadania e uma humanização da convivência, passa ao largo.  Não raro, grande parte deles/delas tinha formação em outra língua. Estavam habituados/as a termos filosóficos, sabiam com profundidade sobre aquilo que ensinavam. E por isso eram admirados e admiradas. E faziam despertar em nós o desejo, mesmo que contido, pela leitura e pelos sonhos que a ciência proporciona.

Como já acontecera antes, quando trabalhei em dois ambientes diferentes nos quais também trabalhou a professora da minha mãe no Grupo Escolar Siqueira de Moraes, a professora Elza Facca, soube que a professora Marília trabalhou nos cursos de Direito e Letras do Centro Universitário Padre Anchieta, entidade em que, em outra época, também trabalhei.

As coincidências da vida são mesmo intrigantes. Certa feita fui colega de trabalho do irmão da professora Marília, o professor José Carlos Buso, alguém por quem nutro grande simpatia e afeto. E com ele vinha trocando mensagens nos últimos anos, para saber da condição de saúde da professora Marília. E neste último dia 11 ela nos deixou. Fiquei muito comovido. Imaginei que eu poderia suprir aquela minha falta, ao não tê-la abordado quando a vi pelo cemitério do centro da cidade. E fui ao velório. Vi naquele rosto a mesma pessoa de 50 anos atrás, embora já em outro plano, espiritual. Tive a comprovação cabal de que realmente era uma pessoa sublime. O mesmo semblante sereno, a mesma afetuosidade, o mesmo carinho. Pareceu-me uma situação de amor filial profundo, como a que senti por meu pai, recém-falecido, ao ver seu corpo sem vida.

Fui lá na minha biblioteca procurar o livro de Leo Vaz, para rever aquela caligrafia artística, os traços tão lindos, correspondentes à sublimidade da professora Marília. A vida de alguém pode terminar fisicamente e, tenho sempre comigo, na condição de historiador, de que o legado é perene, estará sempre na vida de quem recebeu os benefícios do conhecimento de outra pessoa, reconheça-se ou não. Muitos podem esquecer, mas muitos preservarão a memória de quem foi sublime, como faço agora neste modesto texto.

 Minha profunda gratidão a esta professora que me marcou enormemente.

Sobre José Renato Polli

Editor responsável

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2 Comentários

  1. Linda homenagem!❤

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