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A Reclamação

Gosto muito dos ditos populares. Como bom freireano, valorizo e admiro a sabedoria que há nos dizeres do povo. Não por preconceito à linguagem popular, mas por merecê-la como síntese de realidades vivas, recorro a uma história em que rapazes da roça estavam jogando bola e não havia quem apitasse o jogo. Nisso passou um sujeito e eles o interpelaram: “ô moço, apia o jogo prá nóis!” Ao que ele respondeu: “apiá nóis apia, mai num quero recramera!” Sabemos que “apiar”, nesse caso, significa apitar o jogo e “recramera”, a reclamação.

Em jogo de futebol tem que ter um juiz. Temos que escolhê-lo, convidá-lo ou esperar que ele seja indicado por uma federação, não é mesmo? Mas quem é que não reclama quando o juiz apita algo que considera injusto? Todo mundo. Reclamar faz parte da vida. No entanto, reclamamos para que? Por que há queixas? O que nos falta?

Algo sempre nos falta. O problema é não identificar que a falta nos impulsiona para construções novas. Reclamar por reclamar, sem contribuição para a solução de nossas próprias demandas ou das demandas mais gerais, não indica consciência do desejo que nos move. Estamos sufocados pela angústia da eterna falta que não conseguimos suprimir com as queixas.

Neurotizados pelas insatisfações de ordem afetiva, existencial, social, jogamos sempre a culpa de nossos desejos frustrados nos supostos desmandos alheios. De fato, há responsabilidades nos outros tanto quanto há em nós. Mas é mais fácil dizer que a razão de nossas desgraças está na ação do outro. Assumir a responsabilidade que nos cabe no trabalho de construir algo novo já são outros quinhentos.

Tem sempre alguém que pegamos para Cristo. Um professor exigente que nos atrapalha, uma mãe ciosa de nos ajudar a não enredar por descaminhos na vida, um parceiro amoroso que não é bem aquilo que esperávamos, um líder carismático que colocamos no mesmo saco de todos os malfeitores que encontramos pelo caminho. A nossa infelicidade é sempre provocada pelos outros. Nos desresponsabilizamos pelo que nos cabe. Triste condição humana.
Assumir a vida com liberdade não é para tantos assim. Os sintomas sociais de insatisfação têm demonstrado que estamos todos ruins da cabeça e doentes do pé, como dizia Dorival Caymmi. Ruins da cabeça porque projetamos nossos desejos de realização sobre todos os outros e nos frustramos quando não há “contrapartida”. Doentes do pé, porque nos falta aderência histórica.

Afinal de contas, somos ou não seres enraizados? O que fazer de nossas esquisitices e maneirices? Talvez fabricar novos sentidos para essa peleja com juiz. Acreditar, como reza a boa filosofia, que o outro não é o limite, mas a condição de nossa liberdade.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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