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A partida?

Gosto muito de uma expressão utilizada por um importante teólogo: “a morte é um mergulho na vida”. Nossa cultura é marcada por um desespero diante da morte, como se ela fosse antinatural. Nós a vemos como algo a ser evitado, mas a promovemos de diversas formas. Os ódios, as desavenças, as descrenças, as desesperanças, nada mais são do que expressões da morte. Há uma infinidade de possibilidades enquanto nossa materialidade está preservada, para nos mantermos vivos existencialmente.

Temos uma percepção da transcendência a partir de um dado mistificador. Ela é vista como uma condição além da vida. É possível encontrar sentidos e, por consequência uma transcendência, no âmbito da imanência, naquilo que é vivido cotidianamente. Do meu ponto de vida, a fraternidade é uma prova da transcendência. Se as pessoas vivem uma vida dedicada aos outros, sem se esquecer de si próprias, predomina o sentido do cuidado, que nunca deve ser cultivado de forma exacerbada, enquanto apego, domínio, controle egoísta ou suposto amor. Há muitos disfarces que sugerem perspectivas de cuidado que não se configuram como tal.

Ao longo de nossa existência podemos cultivar a alegria de viver. Nem todos conseguimos, porque somos invadidos o tempo todo pelo egocentrismo, aquele desvio psicológico que nos leva a crer que nossas necessidades devem sempre ser satisfeitas, custe o que custar. Enquanto estamos neste plano, temos a chance de simplificar a vida, projetando e imaginando ações que nos façam bem e também aos outros. Como bons motivos para viver, o respeito à natureza que nos cerca, com suas expressões as mais variadas, os animais, as plantas, os rios.

Ler nos sinais do universo as fagulhas de bondade e os olhares generosos de tantas pessoas que vivem e viveram. Não é difícil perceber, basta estar atento. O tom de voz, a simplicidade no vestir, o olhar límpido e generoso. Particularmente já vi muitas pessoas que não estão mais conosco com estas características. Na última semana, uma delas mergulhou na vida. Uma senhora simples e amorosa a quem conheci alguns anos atrás. Dona Alice respirava afetuosidade com os filhos, os netos, as noras e todos os demais amigos da família.

Tenho certeza, como já tive em outras ocasiões, que no caso dela não houve uma partida, mas um mergulho na presença. Uma presença constante, sem par, eterna, que não está mais materializada, mas que se concretiza em bases mais sólidas: amor, laços fraternos, carinho, saudades, paz de espírito. A morte, que não é uma partida, mas um mergulho na vida, simboliza a superação de uma etapa e, refeitos na esperança, agarramos o que há de melhor na existência.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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