Maurício de Sousa criou um personagem de história em quadrinhos que é sempre digno de nota. Horácio é o único no seu rol de criações, como se sabe, cujas falas são escritas por ele próprio. O pequeno dinossauro possui como características a gentileza, a amizade, o espírito fraterno e, ainda por cima, o hábito nada carnívoro, de comer apenas alface. Quando da minha graduação em filosofia, desenvolvi uma monografia sobre este personagem, já que suas falas são de alto teor filosófico.
Ele não fica nada distante de outro personagem, mais antigo, que aparece no meio de uma história infantil escrita por Carlo Collodi em 1883, chamada “Pinócchio”. Trata-se do famoso “Grilo Falante”, que ingressou na trama em 1940. O filósofo espanhol Fernando Savater o menciona como título de um dos capítulos de seu livro “Ética para meu filho”, apresentando-o como a consciência de “Pinóquio” (na versão de Walt Disney). O menino de madeira aparece desenvolvendo um desvio de conduta muito comum entre os humanos, daí sua humanidade em curso em sua matéria prima que se transforma aos poucos. Da madeira dura e rude que mente o tempo todo, quem sabe alguns possam se humanizar em tempo hábil. Eis a mensagem.
As fábulas infantis parecem sempre imiscuírem-se na vida cotidiana. A capacidade de dizer a verdade e se voltar para a própria consciência, avaliando os próprios atos, não é condição natural do ser humano. Por isso somos seres de relação. Se não estivermos abertos a ouvir, reavaliar, revisitar nossa consciência, pagaremos a conta alta de nossas escolhas impensadas. A vida se encarregará de trazer a fatura.
Há muitos Horácios e Grilos Falantes a quem podemos recorrer todos os dias. São as pessoas com mais experiência de vida, nossos espelhos. Nem sempre são os mais velhos, mas certamente reconhecemos seres dignos de exemplaridade, a partir dos quais podemos nortear as nossas condutas. São projetos de humanidade.
Meu velho mestre, Paulo Freire, disse em sua última entrevista para televisão, que o projeto humano um dia vingará. E o que é o projeto humano? Nem que sejamos perfeitos, nem que nos deixemos embalar por relações vis, menos éticas. O projeto humano é a abertura constante para a reconstrução de nós mesmos, em desejos de fraternidade e emancipação que implicam aquilo que ele chamava de “conscientização”. Não se trata de um estado psicológico, mas do desejo mesmo de fazer-se fazendo. Na ação, construímos mudanças em nós e na sociedade. A geração dele não viu, a minha não verá, mas o projeto humano vencerá. Ele disse, eu acredito.