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A NAVE CENTRAL

Gosto de andar pelo bairro em que fui criado. Embora tenha nascido em outro e morado em vários outros, (como diz a música: “já morei em tantas casas, que nem me lembro mais…”) tenho raízes ali naquele pedaço. São tantos os espaços sociais pelos quais circulamos durante a vida, como a família, a escola, os diversos locais de trabalho, os ambientes da cultura, mas há sempre algum que nos deixa marcas indeléveis.

No meu caso, a juventude toda, a minha e de meus mais diletos/as e próximos/as amigos e amigas foi o ambiente de uma paróquia da igreja católica. Ali vivemos intensas e lindas juventudes, a despeito das contradições inerentes à participação numa comunidade e numa instituição, como a igreja católica. As críticas sinceras e esclarecidas, por vezes ácidas e necessárias que fizemos, não diminuíram em nós aquele sentimento, que tenho certeza, permeia também o imaginário de vários dos/das meus/minhas contemporâneos/as. Uma mística que transcende o misticismo. Uma celebração e uma liturgia que são percepções estéticas benfazejas, diárias, de que há sempre um algo mais na vida a ser conquistado, um sentido ético profundo, maior.

Aqueles sacerdotes coléricos e temperamentais, como sujeitos históricos e concretos, também nos deferiam alegrias, elogios e amorosidades situadas em seu jeito de viver. Aquelas noites de sábado regadas a reuniões, namoros efêmeros, festas, passeios e a famosa noitada na pizzaria do Jarbas, ilustravam as pinturas de nossa vida com cores para lá de intensas. Nem todos e todas talvez sentissem com igual profundidade esse desejo de transcendência. Paciência, a vida é assim. Recebi uma antiga foto do Vanderlei, de um passeio realizado em 1979, quando eu tinha apenas 17 anos. suscitou muitas memórias e sensibilidades. Ali na comunidade me deram meu apelido carinhoso, o boy, o boyzinho, mesmo eu sendo um menino da classe operária.

Lembro-me com intensidade de uma cena que julgo apenas eu vi. Saindo de uma das missas destes sábados à noite, um homem recolhendo comida no lixo, bem em frente da igreja. Um sentimento terrível e contraditório em mim. Como podemos celebrar a libertação se aquele homem estava numa condição desumana de vida? E a consciência política se intensificou em mim, em nós, os/as mais próximos/as. Fomos estudar, aprofundar nosso olhar, aprofundar nossas crenças a partir de uma fé esclarecida, desmistificada. E mesmo distantes uns/umas dos outros/as, continuamos na mesma vibração, no mesmo batimento cardíaco. E na contrapartida das contradições mencionadas, hoje vemos sacerdotes voltando a vestir batinas pretas, outros amargurados com a vida, enfurnados em tristezas profundas, porque não conseguiram passar da linha separatória entre a realidade mesma e a mistificação. Distantes do povo e do sofrimento dos esfarrapados do mundo, alimentam-se cotidianamente da velha alienação apontada por Marx, patrocinada em parte pela consciência religiosa precária. Mas o sábio prussiano também alertou que a religiosidade é “o coração de um mundo sem coração”, o que torna a experiência cultural religiosa um fenômeno social e histórico poderoso na ordem da transformação que desejamos. 

Por coincidência, quando hoje andava pelo bairro, após ter visitado a nave central da igreja, fui buscar minha filha na escola e, sem desmerecer o inusitado, mas cultivando a mística a qual me refiro, eis que dou de cara com um amigo da velha guarda, ali no posto de gasolina onde fui abastecer meu carro. Era o Teo. E fiz uma lista mental rápida, de tantos os/as que me embalam no amor fraterno, daquele lindo período de nossas vidas. Os Saviettos, os Graciolli, o Vandão, o Toninho, a Ciça, o Joãozinho, o Claudião, o Paulinho, o Fernandão, o Nelson, o Liba, a Angela, a Edilaine… Meu Deus, são tantos os nomes que participam dessa missa de ação de graças, que nem daria para descrever.

Coisas de um já avançado rapaz da chamada terceira idade, esta condição temporal que parece que nunca chegou. Uma amorosidade que não se perde, um gosto gostoso de ter projetos. E penso nos rostinhos dos/das meus/minhas alunas. Há muito amor envolvido na relação que com eles/elas estabeleço, mesmo que a reciprocidade não seja uma decorrência causal. Para alguns é casual. Para quem bebe educação nunca será apenas um mero contato temporário. E neles/nelas deposito esperanças de continuidade desta saga vital. Amorosidade, proximidade fraterna e compromisso com a razão.

“Ah, se a juventude que essa brisa canta, ficasse aqui comigo mais um pouco”, como cantava lindamente João Gilberto, eu morreria de saudades de um ontem que sempre foi hoje. Permanece. Lá nos cantos da vila, na nave central da igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, em nossos corações de eternos/as amigos/as de uma construção fraterna e coletiva, consciente politicamente, abraçando o sentido fundamental do sonho de Jesus de Nazaré, sem melindres, preconceitos, burocracias, impeditivos ao amor.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, historiador e pedagogo. Professor nos Programas de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO).

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