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SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI A MINHA IGREJA

Tenho como princípio sempre aguardar algum tempo para escrever sobre o que julgo importante. Espero as ideias virem à mente, o reavivamento da memória, para que determinadas experiências passadas me ajudem a “montar um quadro”, uma narrativa que tenha um sentido lógico. Isso com o objetivo de que aquilo escrevo (geralmente direcionado a mim mesmo), faça algum sentido. De ontem para hoje fiquei revisitando dados e informações, sentimentos antigos e recentes, para chegar a este texto. 

Final da década de 70, do alto de meus quase 18 anos, envolvido até o pescoço com o movimento de jovens católicos da diocese de Jundiaí. Esta experiência se fundamentou em outra, que o professor Beni Marchi e alguns casais foram buscar em Campinas no final dos anos 60. Falo do encontro de jovens denominado TLC (Treinamento de Liderança Cristã), idealizado pelo Padre Haroldo Rahm, um jesuíta radicado no Brasil. Tratava-se, naquele contexto, de uma experiência intramuros, moralizante e espiritualista, desengajada socialmente. A diocese, por meio de seu primeiro bispo, encampou a proposta e criou o MOJUC (Movimento de Jovens Unidos a Cristo), mas com um toque de originalidade, porque propôs outros encontros com base na proposta do TLC. Um deles, o JECA (Juventude, Esperança, Certeza e Amor), de feição extremamente moralista, como a matriz que serviu de motivação, dividia os participantes por gênero. Um encontro separado para cada gênero.

A experiência do MOJUC não tardou a passar por dissidências, algumas “mais avançadas”, como a que participei juntamente com a liderança de Edilson José Graciolli, José Vanderlei Franzoni e Antonio Pupo, entre outros amigos, em 1982, com os Encontros Independentes, autorizado por Dom Roberto Pinarello de Almeida. Outras mais radicais no conservadorismo, inclusive servindo de mote para a dissolução do movimento pelo segundo bispo.

Um líder de uma das comunidades de jovens chamada JUSTA, José Lucena, em cooperação com seus membros, imaginou a possibilidade de que o JECA não fosse mais separado por gênero. Surgiu o JECAMI (JECA Misto). Talvez uma profetização de que na salvação cristã não há distinções de nenhuma natureza. É verdade que o próprio TLC seguia essa lógica, de um curso misto, mas na terrinha, o conservadorismo sempre foi um elemento forte.

Naquele grupo da JUSTA estava um rapaz, oito anos mais velho que eu, mas no auge de seus prováveis 26 anos de idade. Eu com 18. Fui a algumas reuniões daquela comunidade, que se organizava na casa do próprio Lucena, que ficava nas imediações da Paróquia Santa Teresinha, onde se abrigava a minha comunidade, a JUBA. Da JUSTA também participava um outro rapaz, que se tornaria cunhado do primeiro, e que cursou o antigo ginásio comigo, lá no velho Adoniro Ladeira, da Vila Rio Branco. E que depois também se tornou meu colega no Seminário Diocesano Nossa Senhora do Desterro. Bem, estou me referindo ao Pedrinho Fávaro e ao Antonio Carlos Inácio de Souza, com quem me encontrei na última sexta-feira, na feira da Vila Rio Branco, quando conversamos sobre o Pedrinho.

Aquela iniciativa da JUSTA, penso ser hoje algo a considerar. Soube que o Pedrinho se insurgiu contra um movimento na Câmara dos Vereadores, que propugnava uma pauta conservadora (dentre as inúmeras que lá circulam), para definir um conceito de família que nada mais era do que um preconceito aprimorado. Mais que isso, atuou firmemente no grupo Diversidade e Fé, que congrega católicos envolvidos com a defesa do princípio da igualdade na dinâmica salvífica. Esse grupo atua contra o preconceito que se intensificou nos últimos anos em prejuízo da comunidade LGBTQIA+. Um alento dentro da igreja.

Fico imaginando se o Pedrinho teria coragem de assinar uma carta, por exemplo, pedindo aos vereadores de Jundiaí, para trocar o termo “Gênero”, por “Sexo”, no plano Municipal de Educação aprovado em 2015. Acho que não. Um cristão como ele não cairia numa armadilha como essa, ajudando a reforçar preconceitos. Ele estava mais para o sentido original proposto por Jesus, o do acolhimento e da compaixão, sem se preocupar com normatizações, legislações, definições prévias sobre o que é ser gente, reduzindo o ser humano ao biológico. Ah, meu Deus, como queria ter conversado com ele a respeito.

Meu raciocínio, já que convivi apenas por alguns breves períodos com o Pedrinho, nada mais é do que algo subjetivo, fruto daquilo que vejo e ouço as pessoas manifestarem a seu respeito. Aposto até que ele era/é daqueles cristãos que investe na “santidade” como uma “caminhada”, uma parte da construção humana, para além do que a maioria de nós poderíamos considerar.

Lá no movimento de Jovens, ele adotou meu apelido (que recebi de presente o Padre Norberto Savietto, que era meu amigo de juventude, quando eu ainda tinha 14 anos) e nos diversos encontros em que participamos juntos, me chamava carinhosamente de “Boy”. Ele vivia lá na Vila, onde fui criado. Certa feita postei a imagem da pinguela sobre o rio Jundiaí, numa foto compartilhada pelo querido Maurício Ferreira. E ele comentou: “passei inúmeras vezes aí quando ia namorar a Sônia”. A Sônia e sua família moravam ali no Jardim Rio Branco, onde fui criado, ao lado da padaria Sant`Ana.

Parece-me até paradoxal que o pai do Pedrinho tenha sido o prefeito da cidade quando em 1966 foi criada a diocese de Jundiaí. Pedro Fávaro era um político exemplar, honesto, daqueles que ninguém tem nada a dizer em desfavor. Vários depoimentos de meus tios, comerciantes do centro da cidade na ocasião, quando a velha prefeitura ainda era ali do lado do antigo Banespa, testemunhavam sobre o seu caráter.

Eram anos de chumbo, é verdade. As contradições do universo político eram intensas, a própria igreja balançava de lá para cá, ora em favor, ora denunciando os desmandos do regime. Dom Gabriel, o primeiro bispo, no entanto, foi signatário do famoso documento “Testemunho da Paz”, em 1972, em que os bispos paulistas, liderados por Dom Paulo Evaristo Arns, tiveram a coragem de se manifestar contra o regime, especialmente por conta dos inúmeros casos de mortes e torturas que acometiam a sociedade brasileira. Mas isso depois do AI-5, porque em 1964 a igreja em peso apoiou o golpe militar, inclusive alguns bispos vindo a público para defendê-lo em função do “perigo do comunismo”.

A igreja está inserida no processo dialético da construção da vida social e comporta possibilidades de manutenção do curso social, bem como de resistências e mudanças, essas nem sempre levadas a sério pela hierarquia. As resistências quase sempre são sufocadas internamente, sobretudo em função do viés moralizante e autoritário, que contamina a sociedade como um todo e do qual a igreja não escapa.

Eu me reencontrei com o Pedrinho na segunda metade da década de 80. Ele, na condição de membro do governo, na Coordenadoria de Cultura do Município, assessorado pelo meu também amigo de ginásio, o jornalista José Arnaldo de Oliveira. Eu, na condição de músico, participando das atividades propostas pela coordenadoria. Uma delas, que hoje imagino ter sido das mais significativas incitativas, que tantos governos progressistas defendem, foi a do projeto das “Manhãs de Lazer”. Grupos de teatro, música e outras manifestações artísticas eram contratados para se apresentarem nos bairros da cidade. Uma descentralização da cultura. Eu e meu grupo musical fomos a vários bairros, entre 1985 e 1986. Geralmente o Pedrinho estava lá, nunca ficou fechado no gabinete.

Um episódio triste da minha vida pessoal aconteceu quando ele era o jornalista responsável pelo Jornal “O Verbo”, da diocese de Jundiaí. Fiquei imaginando se um dia poderia conversar com ele a respeito. Anos atrás, vi que iniciou uma jornada de encontros com pessoas que de alguma forma tiveram relação com ele, levando seus livros, tomando um café. Chegamos a conversar para marcar um encontro. Eu mencionei este episódio, o da publicação de uma matéria contra a minha pessoa naquele jornal. Ele não teve culpa. O editorialista é que teve peso na publicação, porque o critiquei em um jornal da região. Tenho certeza de que Pedrinho foi premido pelas circunstâncias históricas. Queria explicar meu ponto de vista, as minhas motivações. Tenho certeza de que ele concordaria comigo, porque era uma pessoa de coração simples e aberto.

Infelizmente o encontro não aconteceu. Mas sempre acompanhei as postagens do Pedrinho nas redes sociais, seu amor pelos familiares, pela causa do evangelho, pelo jornalismo sério. Certa feita também comentou uma postagem minha sobre a morte de um outro Pedro, o Casaldáliga, em que ele dizia: “um santo”. Pelo que senti nas várias ocasiões em que conversamos virtualmente, ele atingiu o ápice da moralidade, aquele nível maior defendido pelo psicólogo Lawrence Kohlberg. Sua unanimidade, sua capacidade de adentrar a todos os ambientes sem perder de vista o sentido cristão do acolhimento, comprova isso. Por defender publicamente os desvalidos e excluídos de toda natureza, na condição de diácono, fazia mais que boa parte dos membros do clero, aqueles que se preocupam mais com seus paramentos e a liturgia, do que com o mergulho na realidade do povo. Na denúncia profética contra o preconceito, Pedrinho assumia as funções que os diáconos exerciam na igreja primitiva, sobretudo a de cuidar das necessidades das pessoas pobres e alijadas do convívio social. Ele amava a igreja, era fiel. Mas a uma igreja maior, a comunidade dos crentes, que certamente inclui a igreja instituição, mas não é ela. Uma igreja que tantos amam, inclusive muitos que não se inserem na instituição, porque amam a figura de Jesus e perseguem o seu sonho.

Eu também o contatei outra vez para pedir um exemplar do livro que ele e sua filha organizaram sobre a família Cereser. O motivo é que minha tia-bisavó, Quintilha Leoni, era casada com Humberto Cereser. Ele não tinha mais nenhum exemplar. Consegui o livro em um sebo, tempos depois. Coincidentemente, nos últimos dias apareceu nos cinemas da cidade um filme que em muito se baseia no livro, pelo que tomei conhecimento.

Uma última coincidência que me faz sentir um enorme respeito pelo Pedrinho é que um dos santos diáconos mais expressivos da igreja foi São Lourenço e que é patrono dos diáconos. Lourenço era o nome do meu pai, que foi também um homem muito bom, que preferia servir a ser servido. Usei como foto deste texto uma pintura de Claude Vignon que expressa o martírio de São Lourenço.

E fiquei pensando que são muitos os jundiaienses, conhecidos ou anônimos, a quem devemos nos orgulhar de terem existido. Mas poucos são a rocha em que a igreja povo de Deus se sustenta, como é o caso do Pedro Fávaro Junior, falecido no último dia 29, dia de São Pedro. Ele estava trabalhando na assessoria de imprensa da Unicamp, um dos meus ambientes de trabalho atualmente, o que só aumenta minha convicção de que era também um homem da ciência. 

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar (GEPHEES), da Universidade Sorocaba. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Membro do Conselho Científico do Instituto Nacional de Pesquisas e Promoção de Direitos Humanos (INPPDH), do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Epistemologia (UFSCar-Sorocaba) e membro e cocoordenador do EIP - Grupo de Estudos em Educação e Inovação Pedagógica, da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto-Portugal. Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 33 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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