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A ECONOMIA, AS EMPRESAS E O VÍRUS

Durante quinze anos, dos mais de trinta de experiência profissional como professor, atuei em cursos de graduação em Administração e Economia. Minhas disciplinas gravitavam entre os campos da Filosofia, da História, das Ciências Sociais. Também lecionei em cursos de Pedagogia, ministrando as disciplinas relacionadas aos Fundamentos da Educação, Políticas Públicas de Educação e Pesquisa Científica. Hoje me concentro na pós graduação, em cursos de gestão empresarial, direito e educação.

Na área de administração fui professor de Sociologia e de Ética. Em Sociologia, discutia as configurações sociais mais amplas, as contradições existentes no seio da sociedade capitalista e o papel das empresas na sociedade. Além disso, na área da Filosofia, o maior esforço se concentrava na discussão sobre a ampliação de repertórios de avaliação sobre os complexos problemas da vida em suas múltiplas dimensões. Uma destas dimensões, a da vida ética, implicava analisar a possibilidade da atuação ética das empresas no mercado. Uma das referências teóricas vinha dos estudos de Maria Célia Paoli, grande intelectual uspiana, para quem a chamada “responsabilidade social das empresas” nada mais é do que um placebo para atacar problemas econômicos e sociais complexos. Como um estudioso da ética durante mais de trinta anos, nunca entendi o nome dado à disciplina que ministrava no curso de Administração: Filosofia e ética empresarial. É como se alguém que a definiu entendesse que é possível fracionar o debate e as práticas éticas em pedaços. Esta pretensão, equivocada, considera pensar valores éticos específicos para situações e condições sociais específicas: uma ética para a empresa, para a política, para os campos profissionais, reduzindo o debate amplo a pragmaticidades morais, confundindo valores com normas de conduta.

Como a ética se inscreve no campo maior da Filosofia, que se caracteriza por uma reflexão profunda sobre os problemas que nos afligem,  ela deveria ser uma reflexão sobre valores que orientam a nossa prática. Tais valores, que tendem a ser universais, são os mesmos para todas as dimensões de nossa atuação na sociedade: a honestidade, o respeito, a solidariedade, a democracia, a liberdade, a justiça. A discussão que pretendia empreender, desta maneira, estava situada na seguinte questão: é possível uma atuação ética pelo setor empresarial? Creditava à boa parte deste setor, um interesse em patrocinar o debate sobre os dilemas sociais maiores da sociedade brasileira: a fome, as questões ambientais, o desemprego. Sabe-se que um pequeno grupo de empresários, organizados em grupos de influência, se preocupam em propor medidas internas e externas resultantes de princípios éticos maiores, a responsabilidade socioambiental, o respeito, o cuidado, a solidariedade universal. Mas são minoria. Uma das questões práticas que emperram esta dinâmica está relacionada ao respeito a direitos trabalhistas, uma das pontas da corda que coloca trabalhadores e empregadores em situação de conflito.

O mercado não tem ética. Sua própria constituição é fundada no princípio da exploração do trabalho, como já demonstrado pelos grandes referenciais da sociologia geral. Quando há crises, a solução que ele empreende, por meio de governos fracos, se configura justamente nesta perspectiva: afrouxar os impactos  para o empresariado e aumentar na vida dos trabalhadores.  Partes integrantes desta dinâmica brasileira atual, a moralidade conservadora, o desrespeito a normas ambientais, o desprezo à convivência democrática, integram o quadro da crise.

 Da mesma forma, no curso de Economia, ministrava as disciplinas de História Econômica e Fundamentos da Economia Brasileira. Trabalhávamos os clássicos do pensamento econômico mundial, como Marx, Keynes, Galbraith, como contrapontos radicais ou moderados às visões ortodoxas da Escola Austríaca e da Escola de Chicago. E também os clássicos do pensamento econômico brasileiro, de Caio Prado Junior a Celso Furtado, analisando suas contribuições e contradições para o desenvolvimento da economia e da sociedade brasileira.

  Hoje nos deparamos com notícias relacionadas à pandemia do Coronavirus (COVID-19). Em meio a uma suposta oposição entre a necessidade de isolamento social e a continuidade das atividades econômicas, vozes aqui e ali gritam sobre a necessidade de “conciliação” destas duas necessidades, como se os efeitos em si do problema não fossem notados futuramente no plano econômico. O que desejo dizer é que há um falso dilema entre resguardar as atividades econômicas e se isolar. O isolamento é uma exigência da manutenção da vida. Se há vida, há fluxos sociais, políticos, econômicos. sobretudo quando existe proteção social adequada.

Há diversas percepções sobre o que é a atividade econômica. A visão neoliberal tacanha, rascunho da teoria Hayekiana da desresponsabilização do Estado para com as questões econômicas, demonstra-se historicamente inoperante em outros momentos cruciais de desarranjo social. Os liberais sempre buscam soluções “meio termo”, como a política de bem estar social, quando as condições universais de sobrevivência estão em risco. Os mais ajustados a uma lógica de bem estar social associada a discursos mais à esquerda, propõem medidas como a renda mínima, o aumento de direitos sociais básicos, a preservação das condições previdenciárias e de trabalho.

O governo americano, símbolo do conservadorismo econômico, demonstra isso diante da nova pandemia. Só aqui, vozes menores, não esclarecidas, querem nos ensinar, mesmo tendo atuado tanto tempo nos estudos da história econômica e social, que “a economia não pode parar”, mesmo diante de riscos cientificamente comprovados de destruição de inúmeras vidas humanas. Argumentos os menos lógicos possíveis, generalizadores, tentam sugerir que “apenas alguns grupos de risco devem ficar em quarentena”. Há inúmeros casos de jovens e crianças sadios mortos por esta nova saga pandêmica resultante das intervenções humanas sobre a natureza. A proteção social em frangalhos, não dará conta de sustentar a vida dos doentes no pico da crise.

Estamos diante de um quadro grave de avanço de irracionalismos de toda ordem. Entre eles, irracionalismos econômicos, sociais e éticos. Empresas gananciosas e pessoas sem escrúpulos, ajudam a propalar o senso comum perverso que, inconsistente eticamente, coloca acima dos interesses da preservação da vida, os interesses do mercado. O vírus não escolhe idade, condição social e econômica, nem defensores da ordem econômica, ou governantes de plantão. Estamos todos vulneráveis, sobretudo diante da ignorância.

Felizmente, há ecos de inteligência que nos indicam que a história é fluxo contínuo, está sempre aberta a remodelações e novas configurações sociais. As forças democráticas estão procurando consensos mínimos provisórios contra o plano da ignorância política, sobretudo quando há reduções empobrecidas que os incautos sugerem quando colocam o problema maior da existência de uma doença grave como resultado de disputas político-partidárias ou “ideológicas”, como se a inteligência tivesse carteirinha de filiação. Continuemos nossa jornada, antiga e parcimoniosa, em favor da ampliação do pensar reflexivo, criterioso, livre, fundamentado e assertivo para a resolução de problemas como o que ora enfrentamos.

 

Sobre José Renato Polli

Editor responsável

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Um Comentário

  1. Tão necessário esse texto. Principalmente as questões “responsabilidade social como placebo”, “o mercado não tem ética” e a ideologia superando a inteligência… Que tempos! Enquanto isso a saúde pede socorro!

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