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Sangue italiano?

Uma sucessão de eventos e situações sugeriu a possibilidade deste texto. Recentemente o atual governo italiano elaborou um decreto que restringe a cidadania italiana, alterando o princípio jurídico “ius sanguinis” (direito de sangue). A iniciativa provocou uma enxurrada de manifestações mundo afora, entre os descendentes de italianos. O sentimento era (é) o de que algo antes pertencente por nascimento, tentariam retirar a fórceps, pelo ideário conservador dos próceres daquele país. E conseguiram, porque o decreto foi aprovado pelo parlamento italiano.

O ataque a imigrantes e descendentes tornou-se prática comum, no seio dos partidos da extrema-direita europeia. Paradoxalmente, o Brasil foi um dos países que mais acolheu imigrantes italianos entre o final do século 19 e início do século 20. A maioria deles expulsos de seu país de origem, dadas as condições precárias de vida e de trabalho. Deliso Villa relata tais condições em uma obra contundente (Storia Dimenticata – a História esquecida). O autor destaca a figura de um religioso, João Batista Scalabrini, um bispo católico que depois se tornou santo, em sua luta em favor da causa dos imigrantes. Scalabrini, inclusive, esteve no Brasil e segundo consta, figurava como um eventual candidato ao papado, pela sua atuação humanizadora.

O segundo evento, obviamente, relacionado a este, é a morte do Papa Francisco. Ele mesmo descendente de italianos, que em alguns momentos se posicionou sobre esta sua condição de imigrante-descendente, colocando seu pontificado, entre outras causas, em favor de todos os que são obrigados a sair de seus países de origem.

O terceiro episódio da composição do meu raciocínio foi o inusitado de ter assistido um filme, recentemente, que retrata a vida de uma outra religiosa, Francesca Cabrini, também tornada santa pela igreja católica. Uma irmã de caridade que colocou seu trabalho e o trabalho de sua comunidade, a serviço dos imigrantes italianos que se destinaram aos Estados Unidos. Não conhecia a vida desta mulher e fiquei impressionado com sua luta pessoal.

Destes acontecimentos decorrem alguns apontamentos que imagino necessários. O primeiro deles é que ninguém é melhor que ninguém por ser descendente de italianos. Aliás, a maioria dos que vieram para o Brasil, pobres e esfarrapados. Algumas famílias, com muita luta, acabaram por se destacar nas cidades em que se estabeleceram. No caso de Jundiaí, com a instalação do Núcleo Colonial Barão de Jundiaí, houve a possibilidade de que várias iniciassem um processo de evolução econômica, inclusive parte da família do meu tetravô Antonio Passarin, que residiu no núcleo. No entanto, por razões do próprio processo vergonhoso de embranquecimento que vigia no Brasil naquele contexto de final do império, em muitas localidades, assumiu-se como princípio que a influencia dos italianos teria sido mais importante culturalmente que a de outros povos.

Marcada pela vileza da escravidão, a experiência social do Brasil colonial e imperial, não conseguia disfarçar – e mesmo após o “avanço” da instalação da república -, as marcas do preconceito racial. Ser italiano, ou mesmo descendente de qualquer outro povo europeu era “ser superior” aos nossos irmãos africanos. Essa postura arrogante e imoral, se tornou lugar-comum no imaginário da composição da história oficial de muitas cidades, inclusive de Jundiaí. De modo que possuir o “sangue italiano”, não necessariamente significa ser mais gente ou ser mais humano que nenhum outro/a diferente.

Decerto, todos temos o direito a enaltecer a nossa ancestralidade. Mas com a dignidade de nos incluirmos no processo de humanização, que nem sempre confere evolução moral. Há sentimentos, experiências passadas, vivências, dores, alegrias, sofrimentos, que compõem o universo da construção humana de qualquer povo, de qualquer origem. Não há como esquecer também, que tanto no caso da escravidão, como no da imigração forçada de europeus no final do século 19, o que movia a dinâmica da escravização e da exploração do trabalho era a ganância do capital, que transforma seres humanos em mercadorias e mecanismos de favorecimento das oligarquias. Certamente nossos irmãos africanos sofreram muito mais, na própria pele, os interditos à humanização. Quanto a isso não há absolutamente nada que se possa dizer em contrário, pelo menos para os que, como conhecedores da história, a sustentam cientificamente.

O sangue italiano, mesmo que uma realidade entre muitos brasileiros, não confere a consciência de uma diversidade cultural, de que ninguém por ser italiano é melhor que ninguém. Mas há um enaltecimento, junto ao imaginário coletivo de muitas cidades, inclusive a nossa, de que o que se construiu historicamente é fruto tão somente desta nacionalidade. E reforçam-se os preconceitos e esse imaginário coletivo de maior significação cultural ao grupo dos descendentes de italianos.

Eu e meus primos ingressamos com o pedido de cidadania italiana no início de 2024. Nosso processo já estava em um tribunal quando veio o decreto, que não vai afetá-lo, ao que tudo indica. Eu mesmo venho há décadas recuperando historicamente a trajetória histórica de minhas origens. Há meios para isso, documentos, registros. E como ficam nossos irmãos africanos, que nem nome ou sobrenome podem descobrir, muito menos a terra de onde vieram seus ancestrais? Como eles são considerados no conjunto da história local? Como são também lembradas as nossas influências culturais indígenas? Só como objeto de caça dos bandeirantes?

Por fim, pensando na humanização que desejamos, seria bem melhor que nossa história local fosse (re)discutida para que mais preconceitos, injustiças e reificações não sejam legitimados.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, historiador e pedagogo. Professor nos Programas de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de Sorocaba (UNISO). Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Escolar - GEPHEES (Universidade de Sorocaba) e vice- coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação - PAIDEIA (Faculdade de Educação da Unicamp). Coordenador da sublinha de pesquisa Epistemologia e Pesquisa em Educação (FE-UNICAMP). Membro de vários outros grupos de pesquisa. Escritor e membro da Academia Jundiaiense de Letras, ocupando a cadeira 32 (Glória Rocha), tendo publicado 39 livros nas áreas de filosofia, educação, história, literatura infantojuvenil, poesia e contos.

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