Uma passagem evangélica diz: “Deixai-os! Eles são guias cegos guiando cegos. Se um cego conduzir outro cego, ambos cairão no buraco.” (Mt. 15, 14). Antônio de Alcântara Machado em seu célebre conto “Apólogo brasileiro sem véu de alegoria”, usa a metáfora da cegueira física como recurso. O véu de alegoria, nos intentos do apólogo, procurou aproximar a palavra falada da palavra escrita e indica que aqueles que se julgam inteligentes e que acusam os que supostamente não são, nada enxergam. A realidade está na própria história de cada um, cegos ou não. Mas o trem segue. Não para Maguari. Segue para bem longe.
Há os que julgam olhar melhor, mas são cegos ideológicos. Há os cegos limpos de espírito, que enxergam muito mais e esperam o tempo da fala fundamentada. A palavra dita nem sempre corresponde à vivida. A supostamente vivida, nem sempre condiz com a falada inadvertidamente, pelos seus ávidos sustentadores. Calar é um dom. A cegueira é um dom. Falar nem sempre é um dom, por vezes se constitui repetido defeito.
Cada dia mais assustador o fato de haver um fosso entre a decência de quem fala e os olhos de quem de fato vê. Problema crônico da formação ética, inclusive porque o discurso empirista sem fundamentação parece tomar conta do cotidiano, não tomar jeito para o saber que se sabe junto é valorizar um saber que já foi premeditado antes. Temos pessoas de todos os tipos, em todas as funções, que se julgam acima da verdade, individual e coletivamente.
Por mais dados e informações, por mais tentativa de diálogo qualificado, ainda há preferência por ataques diretos e simbólicos, por meio de metáforas pobres, destituídas de singularidade poética. O recurso à literatura, no entanto, faz-se melhor amigo. A vaidade impera como cerne da arrogância do suposto saber. Deitam e rolam as supostas práticas democráticas, como se elas brotassem do chão, sem um lastro, uma legitimidade, um fundamento.
No entanto, ainda há alguns lampejos de esperança. Uma crença na humanidade, que sobrepuja essas mesquinharias todas, como interesses pessoais, tentações as mais variadas em legitimar o que não é ético por meio de “jeitinhos”, simplismos discursivos destituídos de embasamento teórico, pressões ilegítimas de grupos que se julgam acima do todo, infidelidades à verdade, que ora ou outra virão à tona.
No apólogo, sempre está presente um desdobramento moral, numa imaginação narrativa que supõe o diálogo, nem sempre qualificado, mas presente de alguma forma. Aos cegos do trem, vida longa. Aos cegos de espírito, mais luz.