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Dois Rostos

Nesta semana os cristãos celebram a páscoa. A passagem de um estado para outro, de uma situação para outra. Muito apropriado que as comemorações iniciem com a figura de Cristo adentrando à “cidade santa” sentado sobre um burrinho, espelho da humildade de quem é soberano de fato. Crenças religiosas à parte (defende-las não é objetivo deste artigo), simbolismos me interessam.

As paixões pessoais ficam encalacradas em nós, não há como fugir. Não há como alguém se livrar de seu passado. Aliás, melhor assumi-lo. Eu assumo crítica e honestamente. Minhas reminiscências das últimas semanas foram provocadas pelo contato com duas pessoas e seus rostos. Um, direto, franco, honesto, aberto. Outro indireto, distante, sensorial, emotivo-fraternal. Duas pessoas que de alguma forma fizeram revolver a terra fecunda de minhas andanças pelo mundo do sentido existencial, mesmo que eu nunca as tenha visto na vida.

O primeiro era um moço jovem, inteligente, juiz imparcial e honesto, disposto a ouvir, ponderado na justiça e coerente ideologicamente. Senti-me respeitado em minhas falas e posições, acolhido sem julgamentos. Depois de tantos rompimentos ideológicos, aquela situação acolhedora fez-me sentir que o inefável ainda é um traço da cultura que nos arrebata emocionalmente, queiramos ou não. Mesmo o mais franco dos incrédulos, como muitos dos amigos que tenho, buscam a coerência espiritual, que independe de crenças específicas.

O outro rosto pareceu-me familiar. Cumprimentei-o num evento e percebi em seu semblante algo diferente. Uma cordialidade e uma simplicidade hoje em falta. Um amor fraternal e uma disponibilidade impressionantes. O olhar cativante, modesto, interessado, fez diferença naquele dia.

Em termos concretos, os dois episódios remeteram-me a uma páscoa como busca, uma passagem espiritual. Uma transposição ou um retorno aos anseios mais elevados de fraternidade, independentemente das idiossincrasias humanas, minhas e dos outros. A todo tempo, figuras públicas, civis ou religiosas, são alvo de críticas públicas. Mas a certeza inabalável dos princípios que nos movem não podem fazer com que esmoreçamos.

Esta certeza se materializa de diversas maneiras. Para mim, no contato com essas duas pessoas. Como num espelho, vi-me naquela minha juventude, onde o amor pelo conhecimento e pelas virtudes humanas me moviam apaixonadamente. Infelizmente não consegui atingir os patamares ideais que imaginava. Mas a esperança permaneceu e vejo que outros jovens como eu continuam nesta luta, tentando realizar uma grande passagem. Agradeço a esses moços, por terem me ajudado a vislumbrar esforços de humanização que se constituem como verdadeiras páscoas.

Sobre José Renato Polli

Filósofo, Historiador e Pedagogo. Doutor em Educação (FEUSP). Pós-doutor em Educação (FE-UNICAMP), Pós-doutor em Estudos Interdisciplinares (CEIS20-Universidade de Coimbra). Atualmente é Professor Adjunto Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Sorocaba e Professor Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP. Vice-líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da Educação (PAIDEIA) e Editor Adjunto da Revista Filosofia e Educação (ambos da Faculdade de Educação da Unicamp). Editor responsável pela Editora Fibra e Consultor Educacional. Autor de 32 livros nas áreas de Filosofia, História e Educação, crônicas e literatura infanto-juvenil.

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